Um ás fora dos trunfos


Edgar Marcelino e as lesões e decisões erradas que o afastaram dos grandes palcos.

“Não tive a carreira com que sonhava. Chegas aos 24/25 anos e sabes que não vai passar dali. Sei que em grande parte foi por decisões e atitudes minhas, e quando vês que não vai dar é se­guir em frente. Não dá para chegar lá acima chegas um boca­dinho mais abaixo. Mas nunca fui ajudado por ninguém, nunca me empurraram para lado nenhum e nunca tive nada que fos­se dado por alguém.”

Edgar Marcelino parece conformado com o seu percurso no futebol, apesar de as palavras denotarem alguma mágoa. Lesões e más decisões estiveram na base de uma carreira que ficou muito aquém do esperado, principal­mente pelo próprio. Era uma das grandes esperanças do fu­tebol português e, em concreto, do Sporting. Mas Edgar nunca virou a cara à luta e soube sempre enfrentar as adversidades, por muito difícil que fosse a situação.

“Os últimos quatro ou cinco anos foram complicados e posso dizer que tudo o que tenho foi fruto devido ao meu trabalho, à minha qualidade e nada mais que isso. Porque ajudas foram muito poucas. E se os meus companheiros de profissão passassem pelas lesões que passei, muitos tinham deixado o futebol.”

Grande esperança do futebol português
Natural de Coimbra, tinha 10 anos quando o convidaram para ir treinar à Académica. A Briosa estava em confronto directo com o União de Coimbra e precisavam de muitos golos. Logo fez os exames médicos e, quatro dias depois, já estava a jogar. “No jogo de estreia enganei-me no sítio, confundi-me no caminho. Che­guei com o jogo a meio e assim que cheguei, entrei. O segundo jogo foi contra o Condeixa. Ganhámos 12-1, salvo erro, e marquei cinco golos.

Integrei-me bem na equipa. No ano seguinte, che­gámos à fase final do campeonato nacional. Ficámos no grupo do FC Porto, SC Braga e Boavista. Depois havia o grupo do sul e os dois primeiros jogavam a final, em Cantanhede. Fiz cento e tal golos nesse ano! Houve um em que fiz 14 golos, contra o São Silvestre!”, conta.

No final dessa época houve um torneio em Esposende, que con­tou com os três grandes, Cagliari, Celta de Vigo, Académica e Famalicão. Foi o melhor marcador e o melhor jogador do torneio e despertou o interesse dos grandes. O Sporting antecipou-se e o caça-talentos Aurélio Pereira foi falar com os pais de Edgar Marcelino, juntamente com o treinador Osvaldo Silva.

“Como era sportinguista, nem pensei duas vezes. Foi um desafio enorme! Era um miúdo com 12 anos e saí de uma cidade pequena como Miranda do Corvo. O primeiro ano foi muito difícil, deparei-me com outro mundo, tanto que quis sair do Sporting. Tinha sauda­des da minha família”, recorda. Mas no ano seguinte, com o téc­nico Carlos Pereira, foi considerado um dos melhores jogadores dos iniciados. “Foi quando fiz o meu contrato de sete anos com o Sporting. Assinei por quatro mais três. Foi um dos melhores con­tratos que se fez ao nível da formação, já era profissional. Nessa altura ganhava perto de três mil euros. Foi uma boa forma de me segurarem e de mostrarem que apostavam em mim”, revela.



Depois de assinar esse contrato, no primeiro ano de juvenil, par­tiu o pé dos dois lados e ficou um ano parado. Foram precisas duas operações e disseram-lhe que havia a possibilidade de ter de deixar de jogar futebol. Uma lesão muito grave, mas que su­perou. No ano seguinte volta a fazer uma excelente época, com a companhia de Cristiano Ronaldo e Paulo Sérgio no ataque. Mas, quando chegou a hora de renovar por mais três anos, as coisas complicaram-se. O Sporting queria blindá-lo com uma cláusula de rescisão de 25 milhões de euros, o que não foi do agrado do jovem prodígio.

“Cometi um erro muito grande. Devia ter posto a cláusula que queriam. Achava que tinha muita qualidade e fui contra o Sporting. O meu contrato era bom mas passados qua­tro anos já achava que merecia outros valores, quis um aumen­to. Disseram-me que não, que o contrato já estava feito. Esse foi um dos grandes erros da minha vida. Se tivesse renovado as coisas podiam ter sido diferentes. A decisão foi minha e jogado­res há muitos”, penitencia-se.

O erro de Edgar Marcelino fê-lo perder o comboio verde-e-bran­co. Aos 30 anos, com outra experiência, deixa um conselho aos mais novos: “Pensamos que sabemos tudo, que somos os me­lhores e que vamos chegar lá acima. E estava lá muito perto. O Bölöni convocou-me para o último jogo do campeonato, um FC Porto-Sporting, em 2002/03, mas fiz uma entorse gravíssima e falhei o jogo. Se calhar era aquele o meu momento. Cometi um dos maiores erros da minha vida. Era miúdo, tinha muita qua­lidade, era uma das jóias da coroa, como me diziam, mas não tinha a noção da realidade. E no futebol, para caíres é muito rá­pido. Basta um empurrãozinho, tu cais e para te levantares é um problema muito grande.”

Adeus, Alvalade
Ainda integrado nos quadros do Sporting, Edgar Marcelino foi emprestado ao Penafiel. Fez 22 jogos, quase todos como suplen­te, mas gostou da experiência. Só que ainda hoje não percebe a opção do treinador: “Fiz dois jogos a titular: um na Luz e outro em Alvalade. Ainda hoje me pergunto porquê. Se o plantel es­tava todo disponível para jogar e fui titular nesses jogos porque é que não fui noutros jogos? E nesses dois jogos cumpri com o que me pediram.”

No regresso a Alvalade até foi um dos melhores em campo. O Penafiel venceu por 2-0 e Edgar Marcelino fez uma assistência para golo. O então jovem leonino não podia jogar nesse jogo por­que havia um acordo entre os dois clubes, mas pediram-lhe para o fazer e, como profissional, não recusou. “Viajei para Lisboa e pensei que era um presente para vir ver a minha família. Só sou­be que ia ser titular no hotel, na véspera do jogo. Claro que quis mostrar valor, até para voltar, e não celebrei o golo porque tinha contrato com o Sporting. Fiz uma boa época, com um golo e vá­rias assistências”, conta.

Restavam-lhe dois anos de contrato com o Sporting. Volta para Alvalade e, segundo a imprensa, estava a ser dos melhores jo­gadores durante a pré-época, juntamente com Marcelo Labar­the. Duas semanas depois, o empresário ligou-lhe a dizer que o Sporting queria emprestá-lo para ganhar mais experiência. Foi quando viajou para a Holanda.

“Fui para o RBC Roosendaal. Saí de Portugal e não sabia falar inglês, francês ou espanhol. Mas foi uma boa experiência, num bom campeonato, onde se ata­ca muito, e decidi arriscar. Nesse ano desci de divisão, mas fui dos jogadores mais pontuados da liga holandesa. Quando jogas numa equipa que luta para não descer quem se evidencia são os defesas e o guarda-redes, não os avançados”, constata.



E ao recordar a passagem pela liga holandesa tem um novo desaba­fo: “As coisas não tinham de acontecer. Sei que errei muitas ve­zes, mas nunca fui de beber, nunca fumei e nunca fui de grandes noitadas. Infelizmente, no futebol muitas vezes preferem o roto àquele que veste bem, preferem o feio ao bonito, nunca percebi porquê. E há certas coisas que não podes fazer no futebol por­que és mal visto. Tens 18 anos, tiras a carta e compras um bom carro e vêem isso com maus olhos. Mas o que é que se diz a um jogador que ganhe um milhão? Vais pedir ao Cristiano Ronaldo para andar com um Fiat Punto? Tenho 30 anos, sou profissional desde os 15, e nunca paguei uma multa por não cumprir os re­gulamentos internos de um clube.”

Regressou a Portugal e foi novamente emprestado, desta vez ao Vitória de Guimarães. Com os minhotos na II Liga, Edgar Mar­celino pensou que seria o clube perfeito para explodir, mas a decisão viria a revelar-se desastrada. “O maior erro da minha vida foi não ter assinado aquele contrato, o segundo foi rescindir com o Sporting para ir para Guimarães. Se desse uma cabeçada por cada vez que penso nisso mandava um prédio abaixo. Foi um erro crucial, por muito respeito que tenha pelo Vitória, que é um grande clube. Mas achava que era um craque e que depois de seis meses a jogar bem ia dar o salto. É um erro”, lamenta.

Com um plantel praticamente novo, a época não correu bem colec­tiva e individualmente: “Em Novembro, sem ter conhecimento pelo treinador nem por qualquer pessoa do clube, vi num jornal que constava na lista de dispensas, quando ainda tinha um ano e meio de contrato. Fui obrigado a treinar à parte para forçarem a minha saída do clube. Se soubesse o que sei hoje tinha rescin­dido com justa causa e não amigavelmente. Em Dezembro res­cindi e fui para o Omonia, do Chipre. A partir daí fiquei sempre a jogar lá fora, à excepção de seis meses que passei no Estoril.”

Um pesadelo chamado APOP
Depois da curta passagem por Espanha, Edgar Marcelino regressou ao Chipre para viver um verdadeiro filme de terror: “um mês antes tinham sido apanhados com doping, o treinador dopava-os. Dois jogadores suspensos, a equipa sem receber há dois ou três meses e vou para lá com o Semedo, que na época passada esteve no 1º Dezembro. Havia mais duas equipas interessadas e quis ir para o APOP porque o último jogo era contra o Omonia. Duas semanas depois de ter chegado, sai o sorteio dos quartos-de-final da Taça e sai o Omonia. Ou seja, ia jogar pelo menos três jogos contra eles. Eliminámos o Omonia da Taça, depois o APOEL e, na final, ganhámos ao AEL Limassol. Uma equipa pequena e, de um momento para o outro, estava na Liga Europa.

Faço dois jogos fantásticos contra o Rapid Viena. Estão equipas inglesas a ver o ponta-de-lança deles e sou dos que dá mais nas vistas. Fala-se da minha saída por meio milhão de euros. Auferia um salário de 10 mil euros por mês e ofereciam-me 35/40 mil euros limpos. Mas o meu clube queria um milhão de euros. Disseram-me para esperar até Dezembro, que assinava livre e até ia ganhar mais. As inscrições fecharam, jogo a Supertaça do Chipre, perdemos 2-1 com o APOEL e, uma semana depois, num jogo-treino, pedi para sair ao intervalo porque estava morto.

O treinador pediu-me para jogar mais 15 minutos, fiz rotura do ligamento cruzado e estive um ano parado. Desde então nunca mais me pagaram. Tinha tudo para acontecer e tive uma lesão gravíssima no joelho. Vim para Lisboa em Outubro, para ser operado pelo Dr. Fernando Ferreira, que muito estimo e tenho de esperar um mês por seis mil euros para a operação, que pago. Fiz a recuperação no Sporting, onde tive sempre as portas abertas, e fiquei cá a recuperar. Em Janeiro volto ao Chipre e dizem-me que só me vinha embora se renovasse o contrato. Renovei com o APOP por mais dois anos. Tinha seis meses de ordenados em atraso e pagaram-me um nessa altura.


Foto: Ishaan Bhataiya

Vim para mais um mês e meio de recuperação, volto ao Chipre e não posso jogar porque tiraram a minha inscrição para dar a outro jogador. Tive de ficar à espera até à próxima época. Quando volto sou capitão de equipa, quero rescindir com justa causa porque tinha oito meses de salários em atraso e pediram-me para aguentar. Esperei até aos dez meses, quis rescindir com justa causa e recebi ameaças. Depois andaram a seguir-me, a ver a que horas entrava e saía de casa, porque queriam apanhar-me fora do regulamento interno clube. Na véspera de uma folga fui jantar ao restaurante do director desportivo, cheguei a casa às 23h30 e recebi uma carta do clube para rescindir com justa causa.

No dia a seguir fui treinar e o presidente queria tirar-me do campo. Disse-lhe que ia treinar, que não ia ser ele a impedir-me e que se me fizesse alguma coisa garanti-lhe que ia para cima dele. Chamaram a polícia, mas tinha contrato de trabalho e se me tirassem dali processava-os. Treinei, no dia a seguir dei entrada com o meu processo, ganhei a causa, tiveram de pagar-me os oito meses de ordenados em atraso mais um ano e meio de contrato. Desceram de divisão, o clube fechou e tenho no mínimo 250 mil euros para receber. Em Dezembro vim para Portugal e o Mário Jorge, antigo director desportivo do Estoril, deu-me a mão."

Vida de emigrante
Esteve cinco anos no Chipre, com uma curta passagem por Espanha pelo meio. Uma experiência que começou por correr muito bem. “Adorei os primeiros seis meses. Assim que troca­ram de treinador as coisas complicaram-se. Era considerado o fenómeno do Chipre e perdi um bocado o controlo: fiz alguns trabalhos para revistas, passagem de modelos, e é quando pen­sas que está tudo bem e que as pessoas gostam de ti. Mas não é assim. E esse estilo de vida não fica bem com um jogador de fu­tebol, as pessoas não gostam. Se fosse hoje recusava esses tra­balhos. São erros que cometes e que não podes apagar”, avisa.

Esteve um ano e meio no Omonia e os problemas com o trei­nador levaram-no a sair para o Racing Ferrol, de Espanha, que tinha descido à II Divisão B e apresentou-lhe um projecto ambi­cioso. Mais um capítulo que não recorda da melhor forma: “Fiz uns três golos e muitas assistências, mas as coisas não corram bem. Tinha um prémio por objectivos: a cada dez jogos recebia um bolo. Fiz 19 jogos e não joguei mais. Primeiro és beijado pelo presidente à frente de todos e quando as coisas começam a correr mal à equipa és o primeiro a ser esfaqueado.”

Depois do regresso ao Chipre, para o APOP, jogou em Marro­cos, Omã e na Índia, onde esteve na última época. Destinos improváveis que têm surgido de vá­rias formas e quase sempre com pre­juízos financeiros. “Tanto o de Marro­cos como da Índia foram através da Pro Eleven, Omã foi através de inter­mediários. E também não cumpri­ram. Todos os clubes pelos quais te­nho passado tenho deixado dinheiro, excepto os da Índia. Sou cumpridor e gosto que cumpram comigo. E é cha­to, o futebol é para ganhar dinheiro, não para perder. Confio nas pessoas, mas tem sido assim”, diz.

Quando falámos, Edgar Marcelino estava a participar no 13º Estágio do Jogador para manter a forma. Uma iniciativa do Sindicato que repete sempre que pode e aconselha: “Trei­namos com um grupo de trabalho, num bom campo, rodeados de ex­celentes pessoas, sempre prontas para ajudar, em vez de nos treinar­mos sozinhos, na praia, no ginásio, seja onde for, onde não temos con­tacto com a bola.” E apela ao bom senso dos jogadores para percebe­rem uma situação que pode aconte­cer a qualquer um. “Mesmo que não tenhas contrato e corras o risco de ficar sem clube, não é motivo de vergonha para ninguém. Estando em boa forma, se aparecer um clube estás apto para entrar logo na equipa. Por muito bom jogador que sejas, se não estiveres em boa forma física vai-se perceber”, admite.



A vida de emigrante tem sido feita longe da mulher e dos três filhos. Uma situação complicada, mas que prefere enfrentar sozinho: “O Martim e o Salvador também gostam muito de jogar futebol. Nunca os forcei a jogar, veio sempre deles. E ainda tenho a Matilde. É complicado para mim, mas também seria para a minha mulher e para os miúdos, que tinham de mudar de escolas, fazer novos amigos, enquan­to aqui têm a família, falam a mesma língua...”

Aos 30 anos, Edgar Marcelino assume o desejo de voltar ao futebol português, mas as propostas nunca apareceram. “Sei as qualidades que tenho e ainda estou muito bem fisicamente. Ainda te­nho algo a dar. Se não for cá, tenho de ir para outros campeonatos, que não têm a mesma qualidade, mas tenho de pensar que compensam muito mais financeira­mente. Tenho mais quatro ou cinco anos de carreira e depois acaba”, vaticina.

Com o final da carreira a aproximar-se, impõe-se a pergunta da praxe: e depois do adeus? “Vou querer estar ligado ao futebol de alguma maneira. Gosto muito de trabalhar com miúdos. Passei por muita coisa. Fui uma das grandes promessas do futebol português e não cheguei aos palcos onde muita gente pensava que ia chegar. E dessa for­ma podia aconselhá-los a não repetirem os mesmos erros.”