Capitão Aveiro


Após 15 anos como profissional, Pedro Moreira decidiu continuar no Beira-Mar, agora no futebol amador.

Se na banda desenhada temos o Capitão América, em Aveiro encontramos Pedro Moreira. Depois de 15 anos como jogador profissional, o capitão do Beira-Mar optou por continuar no clube, agora na 2.ª Divisão Distrital de Aveiro, para ser mais um a ajudar. Um herói bem real.

“Sinto um carinho especial por parte dos adeptos e também percebo isso porque toda a gente ficou admirada por ter decidido ficar no Beira-Mar, na II Distrital”, revela Pedro Moreira, de 32 anos, 15 como jogador profissional.

O facto de ser o único resistente do plantel do ano passado leva os adeptos a tratá-lo com especial admiração. Com uma longa carreira nos campeonatos profissionais, dividida em oito anos no Penafiel e a cumprir a sétima época no Beira-Mar, Pedro Moreira decidiu permanecer em Aveiro pelo espírito de missão de ajudar o clube.

“Para já, pen­sava que iria ser mais difícil. Mas tenho gostado, sou sincero. Se calhar também por estar a representar o Beira-Mar. Às vezes sou abordado na rua, o Diário de Aveiro destaca-nos muito e sentimos isso na pele. Se fosse para outro clube aqui ao lado, ainda que fosse do mesmo escalão, a realidade seria completamente diferente”, admite.

“Digo às pessoas que gosto do Beira-Mar, respeito o clube e tenho um orgulho enorme em vestir esta ca­misola, mas se tivesse arranjado um clube na II Liga teria seguido aí a minha carreira e ficaria triste pela situação em que o Beira-Mar se encontra.” Não tendo outro clube interessado decidiu ajudar os aveirenses, também com o objectivo de iniciar uma carreira extra-futebol. “O clube também se comprometeu a aju­dar-me a encontrar um emprego”, explica o capitão aveirense.

Existem muitas diferenças entre o futebol profissional e o amador e Pedro Moreira dá alguns exemplos, a começar pelo treino. “São só três vezes por semana. Há jogadores que trabalham, os treinos são à noite, o rendimento é diferente. Antes treinava de manhã, almoçava, descansava, voltava a treinar à tarde, jantava e descansava. Esta é uma das grandes diferenças, mas também as próprias concentrações, os campos, o jogo em si... É uma realidade comple­tamente diferente. E tiro a chapéu a quem anda nos campeonatos amadores. Costumo dizer que quem anda aqui ainda gosta mais de futebol do que quem é profissional.”



O Sindicato apela aos jogadores para conciliar o fu­tebol com os estudos e vai lançar o programa “Va­loriza-te fora das quatro linhas”, uma área à qual Pedro Moreira quer dar maior atenção. “Tenho o 11.º ano completo. Apesar de querer arranjar um empre­go, tenho o objectivo imediato de acabar o 12.º ano. Enquanto profissional estava só focado no futebol e desliguei-me dos estudos, assumo isso. Foi um erro. Quero acabar o 12.º e já vi várias possibilidades mes­mo ao nível da faculdade. Se esse programa do Sin­dicato der para mim faz todo o sentido e logicamente que vou querer aderir a essa iniciativa.”

Crónica de uma morte anunciada
“Eu não queria dizer que o Beira-Mar morreu, mas estava ligado à máquina há muitos anos. Desligaram-na, o clube caiu na II Dis­trital e agora os adeptos ligaram a máquina para o coração vol­tar a bater. O clube está a ressuscitar e sente-se isso. É um bom ponto de partida para limpar de vez com os erros do passado, voltar a credibilizar a imagem e a marca Beira-Mar, que era res­peitada e caiu nas ruas da amargura. Hoje o clube é conhecido só pelas piores razões. Já que estamos a começar do zero temos aqui uma oportunidade única para levarmos isto a bom porto com todos a remar para o mesmo lado. Caímos no pior que po­dia existir para a realidade do Beira-Mar, agora temos tudo a ga­nhar”.

É com este discurso ponderado que Pedro Moreira analisa a actual situação do Beira-Mar. Parece mentira, mas em 2013 os aveirenses disputavam o principal escalão do futebol nacional. Entretanto, sucessivos erros de má gestão provocaram a vertiginosa queda até à II Divisão Distrital.

Para Pedro Moreira, o que levou à destruição do Beira-Mar teve origem ainda antes de existir SAD porque “as pessoas falavam que tinham havido Direcções que não tinham feito bem o seu trabalho.” E quando passou a SAD os interesses do clube enquanto instituição não foram salvaguardados. “Percebo que o futebol é um negócio e que as pessoas que entram nas SAD’s queiram ganhar dinheiro. É legítimo. Se ganharem dinheiro e deixarem o clube estável, tudo bem, mas não concordo que estejam a ganhar dinheiro e a situação do clube piorar todos os anos. Foi o que se passou. Era uma bomba-relógio que estava a ser construída. Mais cedo ou mais tarde isto ia acontecer”, constata.

A última época terá sido provavelmente a mais negra da história do Beira-Mar. Enquanto capitão teve o ingrato papel de tentar mobilizar um plantel a conseguir bons resultados. “Quando não se recebe há cinco meses como é que se consegue ter os jo­gadores motivados para treinar e representar o clube? Não foi fácil. Nós íamos falando e agarrávamo-nos aos momentos em que estávamos a treinar e a jogar. Dávamos o nosso melhor para que se interessassem caso nos vissem jogar, para seguirmos a carreira noutros clubes. Isso foi conseguido. Fizemos um bom campeonato e se tirarmos as equipas B, que não podem subir, ficámos no 7.º lugar. Foi muito bom para aquilo que se passou aqui”, resume.

O incumprimento salarial é um fenómeno que tem afectado muitos clubes históricos em Portugal que tiveram desfechos dramáticos: Estrela da Amadora, U. Leiria, Naval, Beira-Mar... Na opinião de Pedro Moreira isto acontece por falta de responsa­bilidade. “Em Portugal, quem gere os clubes, faça o que fizer, nunca tem culpa. Se chegasse ao Beira-Mar com 500 mil euros de passivo e o deixasse com 600 mil, esses 100 mil de diferença deveriam ser da minha responsabilidade. Apesar dos mecanis­mos que a Liga tenta criar, os clubes dão sempre a volta. Mesmo na I Liga há clubes com muitas dificuldades e nem sabem como conseguem arranjar os pressupostos financeiros. Os problemas são empurrados com a barriga, não são resolvidos. Depois há um ano em que a época corre mal, o clube desce de divisão e é a morte anunciada.”



O Sindicato solidarizou-se com o problema do Beira-Mar e Pe­dro Moreira revela que os jogadores ficaram satisfeitos com o apoio manifestado. “Na altura tive um contacto quase diário com o presidente. Todos os dias o Sindicato ligava a perguntar o que era preciso para resolver determinada situação e foi um bom apoio que tivemos ao nível de arranjar soluções ou até de apresentar estratégias para resolver a nossa situação. Por exemplo, para fazer greve é preciso cumprir as leis, enviar cartas registadas, e nós não sabíamos isso”, assume.

Na recta final da época os jogadores do Beira-Mar anuncia­ram um pré-aviso de greve para os dois últimos jogos, en­tretanto compareceram por terem garantias de que iriam receber. Mas nem todas as verbas foram saldadas. “Para o penúltimo jogo, com o Leixões, exigíamos receber um mês de salários e foi pago em cima da hora. Pelo menos um mês já tínhamos garantido, mas para o último jogo queríamos que nos pagassem mais dois meses. Tentámos de todas as ma­neiras, foi uma semana em que todos os dias era um filme: precisava de carregar a bateria do meu telemóvel todos os dias, a malta já não queria treinar porque não estava a ver as garantias para jogarmos e até à hora do jogo não sabíamos se íamos jogar. Este tipo de pressão nunca foi com o intuito de prejudicarmos o clube, só queríamos salvaguardar a nossa parte”, defende.

Depois de perceberem que não teriam os dois meses pagos antes de jogarem, os jogadores concluíram que se não fos­sem a jogo o clube seria penalizado com a descida de divisão e os adeptos apontar-lhes-iam o dedo. “Cumprimos com a nossa parte e ficámos com a consciência tranquila. Apesar de depois ainda termos recebido mais dois meses, não foi sufi­ciente para a equipa se inscrever, nem no CNS. Nem para isso as pessoas conseguiram garantir os pressupostos para ins­crever a equipa”, recorda.

No último jogo, contra o Académico de Viseu, os jogadores do Beira-Mar ficaram parados durante o primeiro minuto e os adversários foram solidários porque também tinham tido problemas de salários em atraso ao longo da época. “Já que íamos comparecer ao jogo, falámos com a Direcção e com o treinador do Viseu sobre essa forma de nos manifestarmos. O Viseu foi exemplar. Foi um minuto, mas se fossem cinco seriam cinco. Só iam trocar a bola e não iam fazer golo. Nesse jogo fomos nós, quem sabe se daqui a uns tempos será outro clube. Ficou bem para a classe dos jogadores e dos treinadores, foi um sinal de união.”

Uma época para recordar pelos piores motivos
A última temporada ficou marcada pela descida de divisão do Beira-Mar, decidida na secretaria por falta de condições financeiras, isto depois de no plano desportivo a equipa ter terminado na 10.ª posição (em 24 participantes).

Sendo Pedro Moreira o capitão, pedimos-lhe que nos contasse quais foram as situações mais dramáticas que os seus colegas lhe relataram na época passada.



“A questão dos ordenados em atraso leva a muitas consequências, porque é preciso pagar rendas, alimentação, ter combustível no carro para ir para os treinos, e o dinheiro ia faltando. Sei de jogadores que passaram situações dramáticas e dificuldades ao nível da alimentação. A maior parte do plantel vivia num condomínio no qual cortaram o gás, não tinham água quente, às vezes cortavam a luz. Depois o clube lá arranjava dinheiro para resolver essas situações, mas nos últimos quatro meses cortaram o gás e nunca mais foi restabelecido. São condições mínimas de vida que devem ser garantidas. Foi mau demais. Tinha colegas que iam treinar às 9 da manhã sem tomar o pequeno-almoço! É inconcebível. O treinador também sabia e por vezes até isto tinha de ser gerido ao nível do treino. Qual é o treinador que vai exigir o máximo no treino se fisicamente o jogador está no limite das suas capacidades? E isto é muito complicado de gerir. Os portugueses, mesmo que estejam afastados da família, têm um apoio maior, mas esta­mos a falar de um plantel em que 80% dos jogadores eram brasileiros e não tinham cá ninguém. Nem sei como é que a malta conseguiu arranjar forças para fazer a época que fez e representar o Beira-Mar da maneira que representou. É de louvar e sinto-me orgulhoso. Cada vez mais os jogadores devem gerir melhor o pouco dinheiro que ganham. Estamos a falar da II Liga, que hoje já não paga muito. Podemos considerar que 1500/2000 euros é um bom ordenado para o cida­dão comum, mas um jogador tem uma carreira curta e cinco meses é muito tempo sem receber."

Enquanto há vida...
O clube perdeu tudo, inclusive o Estádio Municipal de Aveiro. A época começou com treinos em São Bernardo, um cam­po de relva sintética com as medidas apenas para o Distrital, para o Nacional já não serve. O Mário Duarte não estava em condições, “nem dava para andar aqui, quanto mais treinar.”

Uma logística complicada, como conta Pedro Moreira. “Co­meçámos a treinar lá, em meio campo. Agora já temos este campo para treinar e jogar. Para já temos treinado com a luz do dia, mas quando chegar a noite vamos ver como resolve­mos essa situação. Isto é viver o dia-a-dia, são muitos fogos para apagar. Compreendo as dificuldades, mas estamos aqui de corpo e alma. Se tivermos de treinar em meio campo não nos vamos lamentar. Queríamos melhores condições, mas se não temos treinamos com o que há.”

Estranhamente, ou não, apesar desta descida abrupta na hie­rarquia do futebol nacional, as pessoas abraçaram de novo o clube. “Os adeptos distanciaram-se a partir do momento em que a equipa deixou de jogar no Mário Duarte mas agora, apesar da tristeza, também estão contentes porque o clube voltou às origens. Nunca tinha jogado aqui, foi sempre no Mu­nicipal de Aveiro, e o certo é que já senti um pouco na pele aquilo de que me falavam: ‘no Mário Duarte é que era’, ‘era a casa dos sócios’, ‘os adeptos vinham a pé de casa para o estádio’, este tipo de coisas”, conta.

No primeiro jogo fora, em Oiã, uma localidade vizinha, estive­ram presentes cerca de 1200 adeptos do Beira-Mar, número inesperado para a II Distrital. O regresso de jogadores com passado no futebol profissional e que representaram o Beira-Mar, casos de Cristiano, Rui Dolores e Cílio Souza, ajudou à mobilização das pessoas para reerguer o Beira-Mar, mas Pe­dro Moreira aponta outros motivos.



“Logicamente que a vinda desses jogadores também traz motivação aos adeptos, mas o maior factor para esta aproximação foi o fim da SAD. Agora é um clube da cidade, dos adeptos e dos sócios”, justifica.

Prova disso foi o primeiro jogo em casa, contra o Macieira de Cambra, que o Beira-Mar venceu por 1-0, golo de Mark Vale. “Com todo o respeito, se me perguntassem não conhecia nem fazia ideia onde era. E vieram cá quatro mil pessoas ver o Bei­ra-Mar! Há alguma coisa para chamar os adeptos? Havia tudo para os afastar ainda mais, mas não. Voltar às origens apro­ximou-os”, confirma Pedro Moreira, que acrescenta: “Percebo que as pessoas gostassem mais que o clube estivesse no fu­tebol profissional. É outra visibilidade, seriam outros clubes a visitar Aveiro, mas acho que os adeptos queriam o clube assim, sem pára-quedistas caídos aqui não se sabe de onde e com os quais as pessoas não se identificavam.”

E foi nas bancadas do velhinho Mário Duarte, agora recu­perado após largos anos ao abandono, que entrevistámos o capitão aveirense. Ainda acredita que será possível jogar no futebol profissional pelo Beira-Mar, mas não é uma si­tuação que o preocupe.

“Se subissemos todos os anos eu estaria na II Liga com 35 anos. Se calhar ainda conseguiria fazer um ano para finalizar a carreira como profissional”, diz. Mas a prioridade é o presente: “Quero é ajudar agora. Tenho o desejo de chegar a uma liga profissional mas, aci­ma de tudo, quero ajudar o Beira-Mar. Se forem criados bons alicerces nesta fase inicial o futuro é risonho.”

Perto de nós avistámos uma parede com a pintura da mar­ca das mãos e o respectivo nome das pessoas que ajuda­ram nas obras de recuperação do estádio Mário Duarte. Os adeptos uniram esforços e puseram mãos à obra, literal­mente, para remodelar o novo recinto aveirense. Uma ini­ciativa que deixou Pedro Moreira “admirado e orgulhoso.”

O defesa acrescenta que quando começaram os trabalhos a ideia inicial era trazer a formação de volta ao Mário Duar­te, até porque os seniores ainda nem sabiam se iriam com­petir, mas “foi um orgulho imenso, porque não é usual. Se um conjunto de 20 ou 30 pessoas conseguiu fazer isto, se uma cidade inteira estiver unida com o clube temos aqui matéria mais do que suficiente para voltarmos a colocar o Beira-Mar onde merece, demore o tempo que demorar.”