A guerra das ciências


O Doutor João Arriscado Nunes, na Revista Crítica de Ciências Sociais (Centro de Estudos Sociais, Coimbra) subscreve um artigo intitulado “Para além das duas culturas: tecnociências, tecnoculturas e teoria crítica”, que vale a pena revê-lo e repensá-lo, pois que se afirma ainda de uma flagrante oportunidade.

Começa ele por afirmar que “a teoria crítica parte do pressuposto que o mundo tal como o conhecemos não tem necessariamente de ser como é”. E não têm de ser como são a ciência e a tecnologia que, sendo “a priori” indispensáveis, se afirmam neutrais diante dos grandes problemas do homem e da vida.

Lévy-Leblond, no livro La pierre de touche: la science à l’épreuve (Gallimard, Paris, 1996) defende que se ponha « a ciência em cultura ». Ulrich Beck, sociólogo alemão, criou a sociedade de risco. Três temas ocupam um lugar predominante na reflexão de Ulrich Beck: “as sociedades do presente são sociedades que, continuando a manter uma base industrial se caracterizam pela produção de riscos, de perigos e de incertezas (...). O avanço irresistível de uma modernidade, apoiada na universalização da racionalidade instrumental, levou a que a resposta, para os problemas por ela criados, fosse assumida pelas mesmas instituições e modos de conhecimento científico e especializado, que haviam estado na sua origem”.

Independentemente das críticas que desabaram sobre este livro, por parte de universitários, cientistas e políticos, que rejeitam qualquer assomo de filosofia na investigação científica e se julgam pessoas doutra galáxia, por ostentarem títulos universitários, dando ao olvido, por exemplo, a interdisciplinaridade com outras áreas do saber, incluindo as ciências humanas – a passagem da sociedade industrial à sociedade de risco exige que, em toda a ciência haja filosofia e em toda a filosofia haja ciência! Mas não só: que os modos de conhecimento, considerados laicos ou não-científicos, o próprio senso comum, sejam tidos por interlocutores válidos, dado que todos eles, à sua maneira, integram a mesma comunidade onde a ciência se movimenta.

É evidente que não defendo o patriotismo irracional, o fundamentalismo religioso, o regionalismo pacóvio, o terrorismo, o racismo, a homofobia, as opiniões retrógradas sobre as mulheres, para comparsas no estudo de objectivos gnosiológicos.

O que pretendo realçar é que, hoje, a autoridade científica não há-de esquecer que é preciso sair do quadro eurocêntrico, para construir uma nova ciência e uma epistemologia nova.

Heidegger, terminante como sempre, asseverou que a filosofia fala grego, ou seja, que na Europa nasceu o verdadeiro conhecimento, o mais sério, o mais rigoroso, o mais profundo. Não sei se assim é, mas não tenho a mínima dúvida de que a ciência não pode prescindir doutras formas culturais e modos de conhecimento.

A “guerra das ciências” não tem razão de ser. Com efeito, num mundo, como o nosso, onde a tecnociência impera, 500 dos indivíduos mais ricos detêm um rendimento semelhante ao rendimento somado dos 40 países mais pobres, com uma população de 416 milhões de pessoas. E uma questão ainda: por que nos encontramos em constante estado de guerra, provocando a morte desnecessária de milhões de pessoas, se são imensas as hipóteses da tecnologia e da ciência? E a presença de substâncias dopantes, no sangue dos atletas?

No início dos anos 90, Harald Shumacher, antigo guarda-redes da Alemanha, editou um livro de memórias Apitadela, que foi um êxito no seu país e na Europa Central, por abordar temas polémicos, entre eles o doping.

Dizia Shumacher que quem não acreditava no doping, no futebol alemão, era ingénuo. E passava das palavras aos exemplos: “Tomei captagon, um medicamento à base de efedrina que aumenta a agressividade e a resistência física, mas atenção aos efeitos secundários, pois é uma violência para o organismo e, sem controlo, fica-se completamente KO”.

O antigo jogador do Colónia fala em noites sem dormir, de olhos abertos, fixos no tecto, com muito calor e depois muito frio. E conta a história de como, quando era ainda muito jovem no Colónia, levava no seu automóvel algumas vedetas a casa de um médico da cidade.

“Antes de todos os jogos eles iam buscar rações de pílulas e de ampolas. Aliás, podemos dizer que vários jogadores da selecção foram campeões da Alemanha, graças ao doping” (Afonso de Melo e Rogério de Azevedo, Doping – A triste vida do superhomem, Dom Quixote, Lisboa, 2004, p. 29).

E mais adiante, no mesmo livro, pode ler-se: “O Dr. Marcos Brazão de Oliveira, especialista em Medicina Desportiva, pela Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte, contabilizou, nos seus trabalhos 70 óbitos em atletas causados por substâncias dopantes. Em diversos artigos, tendo como base o tema A Actividade Física e a Morte Súbita considera as anfetaminas e os anabolizantes como grandes responsáveis pela morte súbita em atletas de competição (p. 42).

No livro de Pierre Bourdieu, Science de la science et réflexivité (Raisons d’Agir, Paris, 2003), o autor entra na « guerra das ciências », assumindo-se um racionalista histórico, ou seja, alguém que acredita na razão científica e a defende, partindo da ideia que a prática e a história das ciências se autonomizaram em metodologias que não têm, por agora, alternativa.

Boaventura de Sousa Santos adianta, fundamentando-se na epistemologia do Sul, que a ciência deve incorporar, nas suas práticas, um conjunto de valores que tenham em conta a injustiça, a violência a até a arrogância do eurocentrismo. No desporto, deve acontecer outro tanto. É preciso que os cientistas do desporto lutem (para além de uma ciência rigorosa) por um desporto onde estejam também presentes valores éticos.

Ninguém, com alguma razoabilidade, é contra a ciência, ou contra a tecnologia. Chama-se tão-só a atenção que já se sabe onde levou o positivismo e o cientismo...

Ulrich Beck procura ensinar que vivemos em “sociedades de risco”. Por falta de ciência e de tecnologia?... O desporto tem por si instalações grandiosas, científicas e tecnologicamente bem apetrechadas. Por que não findam, nele, o doping, a violência e a corrupção? Há temas importantes a estudar, no plano lógico, no plano ético, no plano antropológico que os cientistas (e os cientistas do desporto), por vezes, esquecem. Não pode opor-se natureza a cultura, até porque, como diz Morin: “O capital humano fundamental é a cultura. Sem ela, o ser humano seria um primata das classes mais baixas” (Méthode 5, p. 29).

Filósofo do Desporto

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