Futebol e religião


Há uma relação iniludível entre a religião e o desporto designadamente o espectáculo desportivo. É que tanto a religião, como o espectáculo desportivo, não cessam de criar deuses. Não surpreende, por isso, que o futebol haja tomado o lugar da religião e tornou-se, hoje, um espaço que “religa” as pessoas, através de novas crenças e de novos deuses.

Pelé, Garrincha, Maradona, Cruyff, Eusébio, Platini, Zidane, Cristiano Ronaldo, Kaká, Figo, Leonel Messi, etc. são os novos deuses de uma sociedade onde “Deus morreu”. O segredo do sucesso do futebol reside no facto de, nele, não se usarem as mãos e bem pouco a linguagem e, sem as mãos e a linguagem, diminui a consciência, o espírito crítico e libertam-se os instintos mais primitivos.

Qualquer exemplo acabado do senso comum discute futebol, julgando-se sábio, nesta matéria. É que, para falar de futebol, ninguém precisa de pensar muito. Sem as mãos e a linguagem, o futebolista não ultrapassa níveis muito baixos de consciência. A sua vida profissional é uma verdadeira exaltação dos sentidos. ~

Como escreve Álvaro Magalhães, no seu livro História Natural do Futebol: “(...) o jogador de futebol, privado de consciência e carregado de instinto, ganha acesso à intensidade da vida pré-humana e experimenta a matéria de que éramos feitos, antes de sermos o animal evoluído que hoje somos”. Não é verdade também que se diz que Deus escondeu aos sábios o conhecimento religioso que as pessoas ingénuas e simples possuem? Não é verdade que o Deus de Abraão, Isaac e Jacob não é o mesmo Deus dos filósofos?... O futebolista é um ser de puro instinto. Daí que seja tão vasta a fauna futebolística. Eusébio era a “pantera negra”! O José Henriques era o “gato”! O Yachine era a “aranha negra”! O argentino Kempes era a “gazela”! O seu compatriota Ardiles era a “formiguinha”! O brasileiro Edmundo era o “animal”! Enfim, os grandes jogadores parecem animais... de “casta”, ou de “classe”. Só que o futebol actual reproduz e multiplica as taras da sociedade capitalista, onde o lucro é tudo e o ser humano quase nada!

Poucos são os que se lembram que tem de ser mais importante o reconhecimento dos Direitos Humanos, nos jogadores de futebol, do que todos os campeonatos e taças do mundo.

A dopagem, a corrupção, os salários em atraso são alguns dos mais importantes aspectos do predomínio do economicismo, no futebol de hoje. Que os futebolistas que dele são vítima passem a ser respeitados, não como deuses (que o não são), mas como seres humanos. Os futebolistas não são deuses – são pessoas!

Pessoas só e nada mais! Escreveu Albert Camus que “o ser humano é a única criatura que se recusa a ser o que é”. De facto, que seria do ser humano, se não tivesse utopias, sonhos, desejos? Andaria, por aí, amorfo, resignado, sem fé e sem esperança. Que os futebolistas, eles também, façam suas as palavras de Ernst Bloch: “O que é não pode ser”.

O notável pensador peruano, José Carlos Mariátegui afirmou que “devemos não apenas conquistar o pão, mas também a beleza”. Incluindo, acrescento eu, a beleza moral! O futebol não pode continuar a ser uma religião onde os deuses não passam de bestas esplêndidas. Para proveito de alguns (poucos) e alienação de quase todos.

Como já o venho dizendo, há muitos anos: o desporto de alta competição reproduz e multiplica as taras da sociedade capitalista. O “torcedor” que ainda não viu isto, ainda não viu nada!

Mais Opiniões.