“A relação treinador/jogador é hoje muito mais limpa e transparente”


Aos 58 anos, o treinador do Nacional da Madeira observa com o seu olho clínico a realidade do futebol em Portugal, não sem revelar alguns detalhes importantes da sua carreira.

Na I e II Ligas são raros os treinadores estrangeiros. É um sinal do valor do treinador português?
Acho que sim, esse é um dado que, por relação com há dez ou quinze anos, clarifica muito aquilo que tem sido a progressão, daí a qualidade que tem hoje o treinador português. Hoje há cerca de 170 treinadores a trabalhar em mercados alternativos, o que indica que a qualidade assegura a satisfação das necessidades internas e sobra de forma quantitativa para exportar a vários níveis.

Os treinadores portugueses estão mais qualificados ou assiste-se a uma mudança de mentalidades dos dirigentes?
O treinador está hipervalorizado e isso tem justificação pela qualidade do trabalho e da formação que são feitos. O técnico português está muito mais qualificado hoje do que estava há 20 anos. E, de uma maneira geral, o ser humano que hoje encarna o papel de treinador é também muito mais qualificado como cidadão e a nível intelectual e académico. A realidade transformou-se.

Sendo professor de carreira, como surgiu a oportunidade de entrar no mundo do futebol?
Eu estava ligado aos desportos coletivos, sempre fui praticante de andebol e voleibol. A determinada altura, após a minha formação académica, quando já estava a trabalhar como técnico de andebol, surgiu um convite para fazer uma experiência como preparador físico no setor da formação do Vitória de Guimarães. A partir daí fiz a formação técnica específica da modalidade e depois foi um longo percurso.

Ao longo dos últimos vinte anos, tem assistido a diferenças nas relações entre treinador e jogador?
Há sempre diferenças. O mundo não é estático, antes pelo contrário, é muito dinâmico. Assim como a mentalidade do treinador está mais apetrechada, também o jogador percorreu o mesmo caminho. Não se comunica com um jogador da mesma maneira que se fazia há duas ou três décadas. Por isso, a relação treinador/jogador evolui em paralelo e é hoje muito mais limpa e transparente.

Na sua ótica enquanto treinador, qual é a sua grande conquista com um grupo de trabalho?
O trabalho que foi feito no Moreirense, que de alguma maneira, despoletou a minha carreira, que levei da II Divisão B à Primeira Liga é o grande catalisador, é o meu momento mais marcante. Mas eu penso que o sentido de justiça é o grande fator que pode contribuir para que se tenha um grupo e se possa levar esse grupo para o sucesso. Um treinador que não tenha esse sentido de justiça, nas pequenas e nas grandes coisas, poderá comprometer seriamente a possibilidade de ter sucesso.

Acha que os dirigentes estão mais pacientes com os treinadores e não recorrem tanto à chicotada psicológica ou é uma situação da qual não se pode fugir?
A mentalidade dos dirigentes evolui. O futebol do dirigente ‘carola’ evoluiu para um dirigente profissional. As estruturas de hoje dos clubes são muito mais personalizadas e, por isso, os procedimentos são hoje diferentes daqueles que existiam há décadas.

A classe dos treinadores é unida?
Não muito. Os treinadores passam a vida a tentar enganar-se uns aos outros, força daquilo que é a necessidade de ganhar. Enganar-se uns aos outros no sentido positivo, como é óbvio. E por isso isto leva a algum isolamento, a algum guardar para si aquilo que são os seus pensamentos e as suas estratégias. Portanto, não é uma classe que comunique muito. Tem havido alguma evolução no sentido positivo, até pelos contextos de formação que são muito mais do que eram antes. A comunicação acontece mais mas não há uma filosofia de partilha de conhecimento que esteja institucionalizada.

Tem alguma referência como treinador?
Sim, tive um treinador no princípio da minha carreira, com o qual pude trabalhar, que era top e que me marcou e retenho dele muitos dos ensinamentos iniciais. Chamava-se Raymond Goethals, trabalhou no Vitória de Guimarães na época de 1984/1985. É evidente que trabalhei com muitos outros treinadores de muita qualidade: António Ferreira, João Alves, Vítor Oliveira, Paulo Autuori, Marinho, André Simões, Geninho, Pedro Rocha… É um conjunto de treinadores com os quais pude partilhar trabalho e me ensinaram coisas que contribuíram para aquilo que eu sou.

Que balanço faz da época que agora termina?
É uma época que nos traz mais do mesmo. As classificações alteraram-se mas o perfil geral da competição não difere muito daquilo que tem acontecido nas últimas épocas. Tudo gira à volta dos três grandes emblemas, com algumas exceções, e os clubes restantes são um bocado figurantes. Quanto ao Nacional, houve alguma evolução em relação ao ano anterior. Por relação com aquilo que se passou nas últimas épocas, há algum progresso.

Até onde quer chegar enquanto treinador de futebol?
Trabalho com base no dia-a-dia. Há uma faixa de treinadores que definiu um determinado estatuto e, noutras faixas, há outros estatutos. Não antevejo que as coisas se alterem no imediato. Quero chegar ao fim da época e sentir que realizei um trabalho positivo, honesto, que estou de bem com a minha consciência e que tirei do grupo tudo aquilo que ele me podia dar.

Teve apenas uma curta experiência no estrangeiro. Prefere treinar em Portugal?
Não, hoje temos de olhar para o mundo como algo global. O mundo fez-se pequeno e neste momento não há grandes fronteiras. Trabalhar em Portugal, em França, na Grécia ou na Turquia é muito igual. Por isso, do tempo em que estive na Grécia trouxe coisas positivas mas outras menos positivas. Portanto, deu para perceber aquilo que temos de bom e aquilo que temos de menos bom. Temos de olhar para o futebol como algo constante independentemente das fronteiras.

Que impressão tem da ação do SJPF?
Julgo que todos os parceiros dão o seu contributo para que o futebol possa progredir. O futebol, para além da sua vertente desportiva e de espetáculo, é uma grande área de negócio. E ter todos os parceiros sentados à mesa a contribuir para que as regras do negócio sejam o mais transparentes possíveis. O SJPF tem cumprido o seu papel para que a realidade seja cada vez mais conseguida.

Está prestes a arrancar a iniciativa “Estágio do Jogador”. Como vê esta ação do SJPF?
Penso que faz parte do papel do Sindicato. O SJPF não deve ser um parceiro exclusivamente reivindicativo e deve desenvolver ações nas quais essa se enquadra. Penso que é uma boa iniciativa, penso que vários jogadores têm encontrado o seu caminho profissional a partir desse estágio, deverá manter-se e ser mais constante ainda.

Nome: Manuel António Marques Machado
Data de nascimento: 04/12/1955
Clubes como treinador: Vitória de Guimarães (juniores), Vitória de Guimarães (adjunto), Vila Real, Vitória de Guimarães, Fafe, Moreirense, Nacional da Madeira, Académica, Sp. Braga e  Aris (Grécia)