“Temos de zelar pelo futuro e pensar que nada na vida é fácil”


O defesa central da Académica, de 35 anos, está a preparar o futuro e a iniciar o curso de treinador.

Está a concluir o 12.º ano no Centro Qualifica, através do Programa de Educação do Sindicato. Como surgiu o interesse para voltar aos estudos?
Sim, estou a concluir o 12.º no Agrupamento de Escolas Fontes Pereira de Melo. Fiz a minha história de vida, completei essa situação, enviei para os formadores, que me foram encaminhando para aprofundar outros temas. Acabei por ter um trabalho com mais de 200 páginas, foi muito enriquecedor. Agora tenho de ir defender o trabalho perante um júri para poder ficar com o diploma do 12.º ano. Acho que ter a escolaridade mínima obrigatória é já um princípio. Quando somos novos, se calhar as preocupações não são tantas. Achamos que temos muito tempo e queremos aproveitar o futebol. Naquela altura achei que não era importante conciliar os estudos e acabei por abandonar. Tinha passado para o 12.º, mas tinha deixado algumas disciplinas para trás e acabei por perder um pouco a motivação. Os anos vão passando, hoje pedem no mínimo o 12.º e comecei a pensar no meu futuro até porque a minha carreira está a chegar ao fim e era importante ter uma escolaridade aceitável. Como é óbvio, poderei depois continuar e até tirar um curso superior. Também é um facto que para tirar o II nível de treinador era importante ter o 12.º e vou agora finalizá-lo enquanto também estou a tirar o curso de treinador.

Acha que faltam medidas que apoiem a conciliação dos estudos com a profissão de futebolista?
No meu caso foi muito importante ter a possibilidade de trabalhar em casa e ir enviando através de e-mail para os formadores para eles avaliarem os vários temas que abordava no trabalho. Acabei por ganhar tempo com isso porque não tive de andar a fazer deslocações e ter aulas presenciais. Acabou por ser uma boa solução, que aproveitei. Também tenho de destacar aqui o papel do Sindicato. Sou natural da Covilhã, quando estava a jogar lá ainda iniciei uma formação para o 12.º, depois fui jogar para outra zona do país e acabei por desistir. Mais tarde, em conversa com o Anselmo, ele sempre nos disse que o Sindicato tinha vários acordos com escolas e universidades e foi assim que retomei os estudos. É sempre importante preparar o futuro dos jogadores profissionais e podermos concluir algum tipo de etapa que deixámos para trás.

Caso prossiga os estudos, qual é a área pela qual irá optar?
Não pensei muito nisso. Estamos ligados ao futebol desde miúdos e acabamos por pensar que o futuro poderá passar pelo futebol. Nem que seja por uma questão de paixão, é sempre a primeira coisa que nos vem à cabeça. Quando deixamos de jogar, finalizando essa etapa da nossa vida, queremos sempre continuar a sentir o prazer do jogo integrado nalguma estrutura. Há várias possibilidades: estou a tirar o curso de treinador, era engraçado tirar um curso de gestão desportiva, também gostava de tirar qualquer coisa ligada à preparação física…

A família e os clubes por onde tem passado têm-no apoiado relativamente aos estudos?
Sim. Os clubes não metem qualquer tipo de entrave em podermos conciliar o futebol com os estudos. Tudo bem que este tipo de iniciativas não foi por intermédio do clube, foi do Sindicato, e isso tem de ser referido. Aqui na Académica tenho casos de colegas que frequentam o ensino superior e que muitas vezes acabam por ter de ir às aulas e o clube nunca colocou entraves. Pode haver alguma iniciativa de parte a parte, de publicidade ou numa escola, com os miúdos, e o clube acaba por lhes dar essa liberdade para irem às aulas porque percebem que é importante, quando não estão a treinar, ir passando as etapas que têm ao nível do curso que frequentam. Hoje temos vários casos de atletas que conseguiram conciliar os estudos com o futebol até porque os próprios clubes têm essa sensibilidade e não complicam a vida aos atletas porque percebem que é o nosso futuro que está em causa.

Consegue fazer bem a gestão do tempo para os estudos com o futebol?
Sim, até porque há essa facilidade de poder fazer online por uma questão logística e geográfica. Estou associado ao Porto e, estando longe, tenho a possibilidade de fazer em casa. Mas sei de casos de malta que está a tirar o 12.º e estando mais perto das escolas acabam por estar muitas vezes presentes nas aulas, o que também é enriquecedor.

É visto pelos colegas de equipa como um exemplo a seguir?
Acredito que este seja o caminho, pelo menos para quem deixou os estudos a meio ao longo da carreira e perdeu, de alguma maneira, a vontade ou a motivação para estudar. Acabo por ser um exemplo de que é possível conciliar e podermos fazer as duas coisas. É importante que o pessoal que estava na situação na qual eu estava olhe para o meu caso e perceba “epá, se ele consegue, também vou ter de ter essa força de vontade para poder finalizar os estudos”. Além de falar de mim, prefiro até referir companheiros meus que até estão na universidade e, esses sim, são uma motivação maior porque a exigência que lhes é pedida é muito maior. Também temos aqui o Fernando Alexandre, que já finalizou o 12.º, na altura das Novas Oportunidades, e há vários casos de companheiros que ou já concluíram ou estão mais acima do meu ano.

Aconselha-os a não abandonar os estudos?
Aquilo que posso dizer é para não guardarem tudo para a última. Poderei até compreender a forma de pensar deles, porque também pensei assim, que era novo, que o futebol estava em primeiro lugar e que tinha muito tempo para depois pensar nos estudos. Mas se começarem mais cedo até podem fazer as coisas de uma forma mais pausada e mesmo assim vão conseguir adquirir esse conhecimento e terminar esse ensino mais cedo do que eu estou a conseguir. Por querer guardar tudo para a última, acabei por ter de fazer tudo de uma forma mais agressiva, que se calhar me desgastou mais, e mesmo assim consegui e posso dizer que valeu a pena. A malta mais jovem tem de pensar que o futebol são dois dias. Lembro-me de ter 20 anos e pensar que o futebol ia durar uma vida. O que é verdade é que está a chegar ao fim e, olhando para trás, podia ter feito tudo de uma forma mais tranquila, mas não quis. Se pudesse voltar atrás fazia de uma forma diferente para não ter as dores de cabeça de hoje, até porque tinha mais tempo. Quando somos jovens somos solteiros, ou namoramos, ou casamos, mas não temos filhos, aí temos mais tempo para poder fazer estas coisas e até estamos mais focados. E era importante para, quando depois temos filhos, termos isso feito para nos podermos focar naquilo que é mais importante na nossa vida, que são os nossos filhos.

Abandonar os estudos precocemente é uma das maiores “pragas” para quem quer ser jogador profissional?
Isso de facto acontece muitas vezes porque os miúdos acabam por se iludir e pensar que há não sei quantos Cristianos Ronaldos, mas isso não é verdade. O Ronaldo provavelmente não estudou grande coisa, mas teve a sorte de ter o talento que tem e a força de vontade que tem para ser cada vez melhor, mas não vão ser todos um Cristiano Ronaldo. Era importante que os miúdos, e principalmente os pais dos miúdos, tivessem essa noção e fizessem ver aos filhos que se calhar os melhores jogadores do mundo também foram aqueles que estudaram mais. Dizer-lhes que o Ronaldo e o Messi eram os melhores alunos das turmas deles, arranjar estratégias para estimular os miúdos também para eles ganharem motivação e pensarem “se calhar se eu estudar muito também vou ser mais inteligente, pensar melhor o futebol e tomar as melhores decisões dentro de campo porque consigo pensar rápido”. É o conselho que lhes quero dar: não desistam dos estudos, não pensem que jogar à bola desde miúdos é a garantia de que vão chegar a seniores e dar jogadores de futebol, isso nem sempre acontece. Temos de zelar pelo futuro e pensar que nada na vida é fácil. Ninguém nos dá nada e temos de ir à procura das coisas, tanto no futebol como nos estudos.

Um jogador com formação académica pode ser melhor em campo?
Gostava que fosse verdade e não sei se há algum estudo que prove isso, mas acho que dizer isso podia ser uma estratégia para os pais motivarem os filhos na altura da escola. Depois até podem chegar a seniores, terem sido os melhores alunos e como jogadores acabaram por não evoluir tanto, mas isso aí ninguém sabe o que vai acontecer. Mas se isso fosse uma coisa provada não tenho dúvidas de que haveria mais jogadores a estudar. [risos]

Qual é a sua opinião sobre a atuação do Sindicato?
Acho que têm feito um trabalho muito completo e enriquecedor. Cada vez mais estão do lado do jogador em várias situações, seja na altura de premiar o desempenho desportivo, como é na atribuição de prémios mensais, mas também, como infelizmente acontece no futebol, nas situações mais chatas, como litígios entre jogadores e clubes. O Sindicato faz questão de apoiar incondicionalmente os seus associados e isso é o que eu mais admiro no seu trabalho. E também são muito importantes estas parcerias que tem com certas escolas, universidades e outras entidades que permitem aos jogadores poderem pensar no futuro além do futebol.


Perfil
Nome: João Daniel Mendes Real
Data de nascimento: 13 de maio de 1983
Posição: Defesa
Percurso como jogador: AD Estação (formação), AD Estação, SC Covilhã, Naval e Académica.