“Hoje vejo-me muito mais português do que brasileiro”

O guarda-redes brasileiro já passou pela Grécia e Roménia, mas é em Portugal que se sente em casa.
Chegou a Portugal em 2005 para representar o Paços de Ferreira. Adaptou-se bem ao futebol português?
Nos primeiros meses senti algumas dificuldades pelo próprio jogo. Era muito diferente do que estava habituado no Brasil. Aqui o jogo é muito mais intenso, muito mais rápido, e nos primeiros meses senti algumas dificuldades para me adaptar. Mas fora do campo a adaptação foi muito boa até porque o clube tinha muitos brasileiros, que foram fantásticos! Acolheram-me com muito carinho e isso facilitou imenso a minha adaptação. Em relação ao resto, ao estilo de vida, foi tudo relativamente tranquilo. Vivo em Paços de Ferreira e aqui existem alguns restaurantes brasileiros e tudo isso facilitou a minha adaptação fora do campo. Senti um pouco de dificuldade para me adaptar ao futebol, mas, graças a Deus, consegui superar.
O Norte de Portugal é conhecido por ser frio no inverno e vinha do Rio de Janeiro. Isso não lhe custou?
Sim. Sou natural do Rio de Janeiro e quando chegou o inverno realmente aqui em Paços de Ferreira faz bastante frio. Lembro-me de muitos treinos em que o campo tinha gelo e, ao pisarmos o relvado, ouvíamos o quebrar do gelo. E não só, até mesmo o nosso dia-a-dia era sempre um bocado difícil: íamos pela rua e sentíamos um frio que não estávamos nem de perto nem de longe habituados. Tive algumas dificuldades, mas quando você gosta do que faz e tem força de vontade você consegue superar. E eu consegui superar também essa situação do clima, com um pouco mais de dificuldade, mas hoje estou habituadíssimo ao clima de Portugal.
E em relação à língua? Percebia o sotaque ou sentiu dificuldades também nesse aspeto?
É verdade, no início também sentia bastante dificuldade em compreender. Por exemplo, com o míster José Mota, o meu primeiro treinador aqui em Portugal. No início realmente sentia dificuldades em perceber porque ele também falava muito rápido e era complicado. Tinha de pedir: “míster, não compreendi. Pode repetir?”. No início não foi fácil.
Já falou das dificuldades que sentiu para se adaptar ao estilo de jogo. Quais são as principais diferenças entre o futebol português e o brasileiro?
Quando cheguei aqui o futebol português era muito direto. Dificilmente víamos as equipas consideradas pequenas fazer um jogo em construção curta e em ataque organizado. O futebol era mais direto, lutava-se pela segunda bola já no campo do adversário, sem falar dos remates de meia e longa distância, e dos próprios cruzamentos, que eram mais fortes. A tudo isto juntou-se a dificuldade do inverno, com os terrenos muito mais rápidos e escorregadios, totalmente diferente do que é no Brasil.
Além de Portugal e do Brasil, o seu país natal, jogou ainda na Grécia e na Roménia. Fez questão de conhecer novos países e culturas ou as coisas simplesmente aconteceram dessa forma?
As coisas aconteceram assim. A minha ida para a Grécia foi após a minha estada de três anos no Paços de Ferreira. Não era para lá que eu gostaria de ir, tive outras propostas superiores a essa, mas, infelizmente, naquela época aconteceram coisas fora do futebol que me levaram para esse caminho. Se tivesse sido melhor agenciado as coisas teriam sido diferentes, poderia ter ido para um país melhor em termos de futebol. Aquilo prejudicou um bocado a minha carreira. Gostei muito do país, vivia numa cidade que ficava a uns 20 minutos de Atenas, mas não era atrativa porque era próxima de umas montanhas e ficava numa espécie de encosta. Conheci a cultura grega, que é realmente muito peculiar, e as pessoas são totalmente diferentes dos portugueses. Foi mais uma aprendizagem para a minha vida, não só no futebol, mas pessoalmente. Depois disso voltei para o Marítimo. Fiquei três anos na Madeira e também foi sensacional. Em dois desses três anos conseguimos ir às competições europeias e isso marcou muito a minha carreira pelo lado positivo. Agradeço muito ao Marítimo por me ter dado essa oportunidade de voltar a Portugal.
Seguiu-se a Roménia. O que recorda da passagem?
O Marítimo recebeu uma proposta do Rapid de Bucareste para a minha aquisição. Acertámos as coisas, era um contrato bom, o meu salário era superior ao que recebia no Marítimo, o Rapid era um clube grande, com excelentes jogadores e com o objetivo de ser campeão. Cheguei ao clube já com cinco jogos realizados, lá o campeonato começa antes do português, consegui impor-me, fiz bons jogos, mas não contava com um processo de insolvência do clube em dezembro. Começaram aí todos os problemas que prejudicaram imenso a minha carreira em termos financeiros. Mas em termos desportivos foi um ano muito bom. Em janeiro saíram todos os estrangeiros e o clube só não permitiu a minha saída. Naquela altura tinha uma proposta para voltar para um clube português e queria voltar, só que o dono do clube, que tinha sido preso, e o presidente não permitiram a minha saída. O grupo foi praticamente destruído, houve jogadores importantíssimos que saíram e começou aí a decadência a todos os níveis. Mas, para mim, desportivamente foi excecional porque consegui fazer um excelente campeonato e fui eleito o melhor guarda-redes da Roménia. E isso não tem preço, independentemente dos problemas financeiros que tive lá naquela época. Fiquei dez meses no Rapid e só recebi dois meses de salário, que foram pingados, nunca foram inteiros, e tinha de pagar a escola do meu filho, renda do apartamento e o clube não tinha qualquer respeito em relação a isso. No final do campeonato consegui ir para o Petrolul, outra equipa grande, que vinha da conquista da Taça da Roménia. Fiz um contrato de três anos e o clube era excecional em todos os planos: torcida, estrutura, tudo. Tive um ano e meio muito bom, até que chegou uma segunda insolvência! Foi muito mau. Dentro de campo tive muito sucesso na Roménia, graças a Deus, mas tive esses problemas financeiros que me prejudicaram.
Por último, na Roménia, ainda jogou no Viitorul, o clube de Hagi.
Sim, o Viitorul é um clube totalmente diferente de todos os outros da Roménia. O Hagi é o fundador, presidente, treinador, faz tudo. É o cérebro. Foi ele quem mandou construir tudo aquilo com dinheiro dele, não teve ajuda de ninguém, e existe uma identidade e filosofia de jogo desde a formação até aos seniores. Todos os treinadores de todos os escalões seguem a mesma cartilha e isso facilita imenso quando os jovens conseguem chegar aos seniores, tanto que há dois anos foram campeões, um clube que tinha cinco anos de Primeira Liga. E isso é fantástico.
Quando teve esses problemas na Roménia chegou a pedir ajuda ao Sindicato dos Jogadores?
Nessa altura pedi ao Sindicato da Roménia, não estava inscrito no Sindicato português, hoje estou, porque saí de Portugal e como o meu contrato era longo inscrevi-me lá. Mas a lei na Roménia, em caso de insolvência, é uma lei escrava, digamos assim. Depois de o clube entrar em insolvência, o jogador só sai se o clube dispensar. Havia casos de jogadores que já estavam sem receber há muito tempo e não podiam sair do clube nem podiam deixar de treinar e de jogar porque se o fizessem ainda eram penalizados com uma multa. Por isso é que não saí do Rapid nem do Petrolul. Não me deixaram sair e fiquei ali numa situação muito complicada, com as mãos atadas, porque a lei favorecia sempre os clubes. A própria FIFA naquela época não resolvia processos em casos de clubes insolventes, só podíamos entrar com o processo na FIFA depois de o clube sair de insolvência. Neste caso, nem o Rapid nem o Petrolul saíram da insolvência, decretaram falência. Começaram na quarta divisão apenas com uma letra do nome trocado, com zero dívidas e tudo aquilo que deviam ardeu e ninguém conseguiu receber. E o Sindicato também não teve força para fazer muito mais do que tentar orientar-me para quando os clubes saíssem da insolvência.
Veio para Portugal com o objetivo de depois saltar para uma liga mais atrativa ou não fez esse tipo de planos?
Quando vim para Portugal estava no São Raimundo. Todos os jogadores brasileiros querem sair para jogar na Europa, todos têm esse sonho desde a infância. E nesse ano, em 2005, estava a fazer um campeonato muito bom. Era um arranque de campeonato histórico para aquela equipa, o São Raimundo de Manaus, e quando assinei o meu contrato com o clube, como não tinha havido nenhuma transferência, disse ao presidente que aceitava o que ele quisesse, porém tínhamos de colocar uma cláusula que me permitisse sair caso aparecesse um clube interessado de fora do país. E assim foi. Vim para o Paços de Ferreira com o intuito de dar o meu melhor, de mostrar que era um bom guarda-redes, mas não vim com o pensamento de chegar para depois sair. Queria mostrar o meu valor e o meu caráter profissional e acho que foi isso que fiz. Quando saí poderia ter seguido outro caminho, mas nunca podemos reclamar porque temos de agradecer tudo o que Deus nos dá. Agradeço, foi uma experiência diferente, e hoje tenho muitas histórias para contar ao meu filho quando ele crescer. [risos]
Participou na Liga Europa ao serviço de Paços de Ferreira, Marítimo e FC Petrolul Ploiesti. Jogar nas provas da UEFA foi especial?
É muito especial! É a realização profissional e salário nenhum paga isso. Entrar num estádio lotado com o emblema do teu clube e defender um país é muito bom. Graças a Deus tive sucesso por onde passei, não só por ter feito bons campeonatos, mas também por ter ajudado os clubes a conquistar os objetivos que eram delineados naqueles momentos.
Cumpre a nona época no futebol português. Qual foi a mais marcante?
A mais marcante foi a minha segunda época no Paços de Ferreira, em 2006/07, porque conseguimos um feito histórico, que foi terminar em sexto e foi a primeira ida do Paços à UEFA. Foi como se tivéssemos ganho o campeonato, foi esse sentimento. Foi um marco e ainda por cima estivemos um ano e meio sem perder em casa. Batemos todos os recordes nessa época e isso foi fantástico. Não estou a dizer que as minhas idas à UEFA pelo Marítimo foram menos importantes, mas naquela época foi uma grande conquista para o Paços de Ferreira e a nível pessoal acho que foi a mais marcante.
Em 2007 conseguiu a dupla nacionalidade. Porquê tão rápido?
Não foi devido à minha estada aqui em Portugal, mas porque tinha um avô português, na altura ainda era vivo. Quando cheguei, em 2005, dei entrada com os documentos e em 2007 consegui a dupla nacionalidade. Nessa época em que fomos à UEFA, a imprensa ainda falou de uma possível ida do Peçanha à Seleção portuguesa e isso foi muito bom a nível profissional.
Chegou a equacionar essa hipótese? Era um objetivo?
Não era um objetivo porque sabia que era muito difícil um guarda-redes estrangeiro ir à Seleção porque havia grandes guarda-redes portugueses. Foi falado pela imprensa, foi uma realização a nível profissional muito boa, mas não tinha isso como objetivo. Mas é óbvio que fiquei muito satisfeito com esse tipo de comentários.
Notou uma evolução no futebol português ao longo destes anos ou, pelo contrário, o cenário atual é pior do que quando chegou em 2005?
O futebol português evoluiu imenso. O campeonato hoje está muito mais equilibrado. Hoje vemos as equipas pequenas a fazer grandes campeonatos, com uma qualidade de jogo muito boa. Hoje o SC Braga é uma equipa com muita qualidade, com o trabalho que o Abel [Ferreira] vem fazendo, o Guimarães também está a mostrar um excelente futebol, quando o míster Luís Castro esteve no Rio Ave o clube também evoluiu imenso a qualidade de jogo, ou seja, acho que o futebol hoje está muito mais equilibrado e isso favorece muito o próprio futebol. Além de ser bom para os jogadores e para os clubes, acaba por ser uma vitrina apetecível para os outros países, para os tubarões da Europa poderem vir buscar algumas pescadinhas, digamos assim. [risos]
Cumpre a sua segunda época na Segunda Liga. Como avalia a qualidade do segundo escalão do futebol português?
Na época passada, quando estive no Académico de Viseu, surpreendi-me. Não tinha noção de qua a Segunda Liga era tão disputada e equilibrada. Hoje percebo que não seja nada fácil para as equipas da Primeira Liga jogar contra as da Segunda e vemos várias surpresas nas taças porque na Segunda Liga existem equipas com muita qualidade de jogo, com muita vontade de ganhar os jogos e isso é muito bom. Tal como falei em relação à Primeira Liga, hoje muitos jogadores saem da Segunda Liga de Portugal e vão jogar numa Primeira Liga de outros países europeus. Isso mostra que há qualidade na Segunda Liga também.
Qual foi o melhor jogador com quem jogou em Portugal?
Graças a Deus tive a felicidade de poder jogar com grandes jogadores. Tive um defesa central no Paços com quem adorei jogar, e joguei mais tarde com ele no Petrolul, que foi o Geraldo Alves, o irmão do Bruno. Tive o Robson, defesa central do Marítimo, que também era fantástico, além de outros jogadores dessa equipa, que era muito boa: Paulo Jorge, Briguel, Roberto Sousa, Rafael Miranda, Olberdam, Marcinho…. São alguns dos jogadores com quem gostei de jogar aqui em Portugal.
Quando visita o Brasil e volta a Portugal, o que é que faz questão de trazer sempre na mala?
Hoje vejo-me muito mais português do que brasileiro, mas quando vou ao Brasil a única coisa que não pode faltar quando volto são as Havaianas! [risos]
Que opinião tem sobre o trabalho do Sindicato dos Jogadores no futebol português?
Acho que evoluiu imenso de há uns anos para cá e isso é muito importante porque tem dado um apoio muito grande aos jogadores, não só em Portugal, mas também no estrangeiro. O Sindicato está a fazer um excelente trabalho, espero que possa evoluir ainda mais e que obrigue os clubes a cumprirem as suas obrigações com os jogadores. Os clubes têm de perceber que o jogador não é uma peça descartável. O jogador tem sentimento, é um ser humano, necessita de carinho e atenção, não só de cobranças. As pessoas ainda olham para os jogadores de futebol como sendo máquinas, têm de dar rendimento e performance em todos os jogos. Percebo isso, mas ali está um ser humano que também deve ser acarinhado. Não digo miminhos e passar a mão na cabeça, mas sim, nos momentos difíceis, estarem ao lado dos jogadores porque também são ativos dos clubes. O Sindicato está no caminho certo e peço que continue porque nós também precisamos.
Perfil
Nome: Peterson dos Santos Peçanha
Data de nascimento: 11 de janeiro de 1980
Posição: Guarda-redes
Percurso como jogador: Flamengo (formação, Brasil), Bangu (Brasil), América RJ (Brasil), Horizonte (Brasil), River (Brasil), Rioverdense (Brasil), River (Brasil), São Raimundo (Brasil), Paços de Ferreira, Thrasyvoulos (Grécia), Marítimo, Rapid Bucareste (Roménia), FC Petrolul Ploiesti (Roménia), Viitorul Constanta (Roménia), Feirense, Académico de Viseu e Académica.