“A qualquer sítio que vá sou visto quase como um extraterrestre”


Há três meses na Arábia Saudita, o defesa reconhece que o espírito aventureiro pesou na sua decisão.

Que balanço fazes dos primeiros meses na Arábia Saudita?
Vim para cá no dia 24 de junho, nas primeiras duas semanas estivemos em estágio no Egito, portanto está quase a fazer uns três meses que estou aqui na Arábia. Faço um balanço positivo. A nível profissional as coisas estão a correr bem, estou a fazer os jogos todos, tenho os minutos todos, tenho tido um bom feedback e sinto que as pessoas gostam de mim.
As únicas coisas que têm sido mais difíceis são as questões culturais, linguísticas e de mentalidade. Shaqraa, infelizmente, é uma cidade pequena, mesmo no interior da Arábia Saudita. Tem muito pouca gente, há pouco ou nada para fazer, quase não há restaurantes e essa parte é um bocadinho mais difícil de lidar. Mas faço um balanço positivo.

É um país bastante diferente de Portugal. Como tem sido a adaptação em termos de língua?
Não está a ser tão difícil quanto esperava porque já sei muitas coisas em árabe, nomeadamente as coisas técnicas dentro de campo. Como central tenho de estar sempre a dar indicações aos meus colegas. Isso praticamente sei tudo, coisas como: sobe, desce, para, aqui, ali, direita, esquerda, passa, remata, estás só, tens homem, mais rápido, devagar, cruza, troca….
E tento todos os dias aprender frases para o dia-a-dia. Portanto, a nível de língua não tenho tido problemas até porque falo relativamente bem inglês, ainda que, como não temos nenhum tradutor no clube, tem de ser o treinador adjunto, que fala bem inglês, a traduzir-me tudo o que o treinador diz aos jogadores, tanto nas palestras como antes dos treinos.
Agora a nível de escrita e de leitura é impossível porque eles escrevem da direita para a esquerda e os caracteres são muito diferentes. Depois têm um calendário próprio, estão no ano 1441, não sei ao certo, mas é qualquer coisa assim de muito diferente, e só estando cá muitos anos é que é possível aprender. Mas já falei com portugueses que estão cá há dez anos e não sabem nada. É muito complicado.

Tens algum brasileiro na equipa? Ou alguém com quem possas falar português?
Tenho um brasileiro. Aqui temos o limite de sete estrangeiros por equipa: temos um brasileiro, um tunisino, que fala francês, e consigo perceber as coisas básicas, depois um do Togo, um costa-marfinense e um ganês. Com esses, falo inglês. Dos sauditas, há dois ou três que falam bem inglês, dou-me bem com eles. Com os outros também dou, mas é um bocado à distância, é mais por gestos.

E dás-te bem com o colega brasileiro?
Ele esteve lesionado e praticamente não tive contacto com ele durante a primeira parte da época. Só voltou a treinar há cerca de duas semanas. Até lá esteve a fazer tratamento numa clínica na capital, em Riade, e quase nunca veio cá. Ainda nos estamos a conhecer, é toda uma fase nova, mas tem sido bom para falarmos português, sempre dá para desabafarmos. Ele vem de uma realidade mais ou menos parecida com a minha e dá para conversarmos um pouco sobre essas questões.

Dizes que é uma cidade pequena, mas tiveste alguém para te mostrar as principais atrações?
[risos] Principais atrações não há! A cidade tem uma universidade, uma escola, uma área de lojas que tem um supermercado grande e pouco mais. Não há um cinema ou um restaurante bom, não tem cafés ou bares porque aqui não é permitido o álcool, é tudo muito diferente.
Mas quando aqui cheguei houve uma pessoa que me foi mostrar o sítio onde era a minha casa, porque o clube ofereceu-me casa, carro e as condições básicas, e depois demos uma volta pela cidade. Em cinco minutos mostrou-me o que havia para conhecer.

É possível andar normalmente na rua ou o calor obriga-te a passar muito tempo em casa?
Quando cheguei era impossível porque as temperaturas andavam nos 46/48, cheguei a apanhar 50 graus! Isto é mesmo no interior e as amplitudes térmicas são muito grandes. Felizmente a casa é razoavelmente boa, tem dois ares condicionados, está sempre fresquinho, agora fora de casa nesse período era muito complicado, tanto que só treinávamos ao final do dia. Na altura era por volta das 19h30 e, mesmo a essa hora, era muito quente. Ia-me deitar e estavam 38 graus à noite.
Neste momento já dá para andar na rua, só que a qualquer sítio que vá sou visto quase como um extraterrestre. Eles aqui andam todos tapados, tanto as mulheres como os homens, e eu, com o calor que está, ando de calções, t-shirt, alças, de Havaianas, como ando em Portugal. Eles olham para mim, veem as tatuagens, as alças e os chinelos e tudo aquilo deve fazer-lhes muita confusão. Ao início olhavam-me assim meio de lado, faziam caras estranhas, mas neste momento, como isto é pequeno e toda a gente se conhece, já sabem que sou jogador do clube, já me felicitam na rua, já me dão um apoiozinho, mas no início foi complicado. Sentia-me observado e mesmo rejeitado, não era fácil.

Encontraste uma equipa com um bom nível ou é mais baixo do que aquilo a que estavas habituado?
O nível não é mais baixo porque há qualidade, os jogadores sauditas têm qualidade. Onde vejo muita diferença é ao nível do profissionalismo, de métodos e rigor. Eles têm outra cultura, veem o futebol de outra maneira, para eles a religião é o expoente máximo da vida deles. Aquele culto que temos do balneário, de chegar mais cedo, de estar a confraternizar e fazer o trabalho prévio, que continuo a fazer, eles não têm esse hábito. Chegam diretos de casa para o treino com o equipamento vestido, nem passam pelo balneário, vão treinar, acabam o treino, metem-se no carro e vão-se embora.
Nunca há uma hora estipulada para os treinos, todas as semanas há uma hora nova, depende da reza deles, quando acaba a reza começamos a treinar, tenho de saber mais ou menos os horários das rezas para andar sintonizado e chegar a horas, ainda que vá sempre um bocadinho mais cedo, mas ao nível de jogo é diferente. Não digo que seja inferior, porque não é, mas é um jogo mais partido. Eles jogam muito com o coração e com a alma, são muito emotivos, exaltam-se muito e vão-se muito abaixo.
Por exemplo: estamos a ganhar por 1-0, chegamos aos 75/80 minutos e, em vez de conservarmos a bola, continuam a querer atacar e, quando damos por nós, não está ninguém na defesa e estou lá eu sozinho aos gritos com eles porque foram todos para a frente e ninguém desce. [risos] É diferente. Talvez o nível seja inferior em certas coisas, mas creio que esteja ao nível da nossa Segunda Liga, que era onde estava quando saí de Portugal.

E que diferenças existem entre a liga saudita e a nossa? Os estádios têm gente, por exemplo?
Sim, temos público, ao nível da Segunda Liga de Portugal. Os estádios não estão cheios, mas há gente a assistir, há claques, não há é mulheres, que são proibidas de entrar.
O que sinto aqui é que os jogos são quase todos transmitidos pela televisão. Há dois ou três canais de desporto. Tal como temos a Sport TV, eles têm a KSA Sports e passam três jogos da Segunda Liga por dia. Normalmente jogamos às terças e quartas e os jogos da Primeira Liga são às sextas e sábados. Fazem praticamente a cobertura de todos os jogos da jornada, o que é muito bom porque depois há comentários e dá muita visibilidade.

Jorge Jesus está a ter impacto no futebol do país? Sentes esse feedback?
Sinto. No início quando dizia às pessoas que era de Portugal respondiam-me: “Portugal? Ronaldo! Ronaldo!” E hoje já dizem: “Ronaldo! Jesus! Al-Hilal coach!”.
As coisas estão a correr-lhe bem. Tenho acompanhado e sei que estão a gostar dele e que está a ter o impacto que era esperado.

O que é que os sauditas conhecem do futebol português além de Ronaldo, Mourinho e agora de Jesus?
Falam muito do Quaresma. Alguns falam-me do Nani por causa do Manchester United, e pouco mais. Eles não têm muito conhecimento.

Apesar de teres ido para a Segunda Liga, conseguiste um contrato das Arábias?
Apesar de ser a Segunda Liga, o campeonato tem muita visibilidade e tem um nível alto. A Primeira Liga está cada vez mais forte com a abertura para sete vagas de estrangeiros, o que veio elevar bastante o nível e, consequentemente, o da Segunda Liga. Mas, mais do que o dinheiro que ganho, aqui sinto-me realmente importante e sinto que as pessoas gostam de mim e confiam em mim. Foi também isso que vim à procura, de evoluir e ver o meu valor reconhecido.
Claro que recebo bem mais do que recebia em Portugal, mas a minha vinda para cá foi sempre no sentido de me dar a conhecer num novo mercado, mostrando trabalho árduo e sério, tal como fazia em Portugal, mas, infelizmente, nem sempre era e continua a não ser reconhecido. Não é o contrato das Arábias que as pessoas pensam, mas quem sabe um dia o conseguirei alcançar. Neste momento estou mais preocupado em dar o melhor de mim todos os dias e ajudar o clube com os seus objetivos tanto a curto como a longo prazo.

Sentes que te cobram mais por ser estrangeiro ou, por outro lado, és mais protegido por isso?
Não vou dizer que me cobram mais. Sinto que tenho mais responsabilidade que os outros. Sinto que as pessoas confiam em mim e estão sempre à espera que as coisas corram bem, mas somos estrangeiros, vimos para cá para acrescentar. Não sinto pressão de me cobrarem, mas sinto que há uma maior responsabilidade da nossa parte do que dos sauditas. Acaba por ser natural.

Inscreveste-te no Sindicato da Arábia Saudita?
Não. Nem sei se eles cá têm. Além disso, estou satisfeito com o de Portugal, por isso….

Já viveste algum episódio caricato durante esta experiência?
Ui, já vivi alguns. Lembro-me que assim que aqui cheguei, depois de um treino, no balneário despi-me para ir para o duche. Eles calaram-se todos, ficaram a olhar para mim e um dos estrangeiros lá me explicou que não podia fazer aquilo. Em Portugal tomamos banho no balneário, todos juntos, mas aqui vão de toalha à cintura ou de calções para o banho, cada banheiro é individual, entram, fecham a cortina e tomam banho. Pedi desculpa, meti a toalha à cintura e lá fui tomar banho.
E no primeiro jogo que tivemos, ao intervalo, o treinador estava a dar a palestra e a explicar o que queria, o treinador adjunto estava a ajudar-me a percebê-lo e, passado um bocadinho, do nada, quatro ou cinco jogadores levantam-se, metem-se atrás dele, ajoelham-se e começam a rezar. O treinador continuou a palestra normalmente e achei aquilo estranho. Em Portugal ficamos bastante atentos ao que o treinador pede, ainda por cima estávamos a perder e eles foram rezar.
Foi mais um daqueles choques culturais. Agora já estou mais habituado, mas foi outro episódio caricato.

Tens espírito de aventura para descobrir novos países e culturas?
Tenho, sem dúvida! Aliás, se não fosse isso não tinha aceitado este desafio. Claro que a nível monetário é muito melhor, pode vir a ser ainda melhor, mas há coisas das quais abdicamos e que não são fáceis como ter deixado a minha namorada em Portugal, ela só podia vir se fossemos casados, os meus amigos também não podem vir cá, só pode vir a minha família e, mesmo assim, não é fácil, às vezes os vistos não são permitidos. Ou seja, o dinheiro é melhor, mas tenho muita coisa em causa e o dinheiro não é tudo. Se não fosse por esse espírito de aventura e de conhecer, possivelmente não teria vindo. Ok, ganhava bem menos em Portugal, mas estava confortável ao pé dos meus.
Acho que se não fosse o futebol a proporcionar-me isto, nunca iria viver um ano, ou dois, não sei quanto tempo é que vou ficar cá, na Arábia Saudita. Acho que é uma aventura e um episódio que daqui a uns anos vou contar aos meus filhos. É algo muito diferente e acho que está a enriquecer-me a todos os níveis. Estou a ficar mais capaz em todos os aspetos, até já sei cozinhar! [risos]
Está a fazer-me muito bem e tenho gostado de conhecer estas novas culturas, novas pessoas e novas rotinas. Tem sido bastante interessante nesse aspeto.

O que é que vais levar na mala quando vieres a Portugal? Há alguma coisa que te faça falta que não encontres aí?
Há, muita coisa. Nomeadamente gostava muito de comer fiambre ao pequeno-almoço, gostava de ter chouriço e linguiça, coisas que aqui são impensáveis porque não comem porco. Lembro-me de uma vez ter ido às compras, queria comprar vinho branco para temperar a comida e não existe álcool em lado nenhum, aqui é proibidíssimo. Mas também não o vou trazer porque seria posto em xeque.

Qual é a tua opinião sobre o trabalho do Sindicato no futebol português?
Acho que essa questão tem sido respondida ano após ano com o trabalho que o Sindicato tem feito tanto ao nível de defender e ajudar o jogador, como de promover o jogador, como agora estás a fazer. Estão a fazer um excelente trabalho e acho que devem continuar com estas iniciativas de promover e ajudar os jogadores porque tem sido uma tarefa na qual têm tido muito sucesso.


Perfil
Nome: Vasco Reis Peixe Sanona Coelho
Data de nascimento: 5 de maio de 1994
Posição: Defesa
Percurso como jogador: Real (formação), Benfica (formação), Real (formação), Casa Pia (formação), Real (formação), Real, Loures, SC Braga B, Casa Pia, Farense, Real e Al-Washm (Arábia Saudita).