Ença Fati: “Lá no bairro, todos queriam ser futebolistas para tirarem a família do sufoco”


Chegou a Portugal com dois anos de idade. Da Guiné-Bissau pouco recorda, pouco sabe.

Chegou a Portugal com dois anos de idade. Da Guiné-Bissau pouco recorda, pouco sabe. Os primeiros remates na bola foram dados aos cinco anos, no Lumiar, num bairro onde todos sonhavam viver do futebol. Os pés eram vistos como a “ferramenta” capaz de ajudar quem não nasceu num “berço de ouro”. Hoje, vai à bola na UD Oliveirense, casa que bem conhece.


O Fati é daqueles casos em que “nasceu com a bola nos pés”?
[risos] Eu já nasci com o ADN do futebol. Na minha família existem futebolistas, mas nunca ninguém chegou tão alto como eu. Desde sempre que quis ser futebolista. Lá no bairro todos querem ser futebolistas, querem chegar longe para poderem tirar a família do sufoco. Nós utilizamos os pés como ferramentas para tirar as nossas famílias desse sufoco. Desde os cinco anos que jogo à bola no bairro do Lumiar (Lisboa).

O sonho dos miúdos do teu bairro era esse?
Nós ficávamos a jogar à bola no bairro até às tantas e cada um falava do seu sonho. Todos nós dizíamos: “Vamos ser futebolistas e tirar a nossa família do sufoco”. Só queríamos ajudar a nossa família a ter uma boa casa. Não nascemos num berço de ouro, entendes? Sabíamos que tínhamos de trabalhar quatro vezes mais para conseguir.

Ença Fati começou a dar os primeiros toques na bola aos cinco anos, no bairro do Lumiar, em Lisboa.

Há talento no bairro?
Há muito talento no bairro que não é aproveitado, acredita. O Renato Sanches começou no Lumiar, por exemplo. O Elson Tavares, que esteve no Moreirense, também tem um futuro incrível no futebol. 

Foi em Espanha que o Fati começou o percurso enquanto jogador, certo?
Certo. Era um miúdo e disse aos meus pais que queria ir para fora. O meu tio vivia em Espanha e tinha os filhos a jogar em Sevilha. Uma vez ele disse-me: “Se quiseres vens fazer uma prova para ver se ficas ou não”. Eu fui lá, eles gostaram de mim, fiquei, mas como era muito pequenito e magrinho eles decidiram emprestar-me. Depois fui para uma equipa de terceira divisão, o Herrera. Mais tarde para um da segunda B, até vir para Portugal jogar no Real Massamá e depois no Moreirense.

Em Portugal, o primeiro clube que representou foi o Real SC.

 O “pequenito” e “magrinho” acabou por ser um dos responsáveis pela conquista da Taça da Liga em 2016/17, com a camisola do Moreirense?
Sim, foi. Nessa altura em que começou a Taça da Liga o treinador do Moreirense era o Pepa. Até comecei bem a época, fiz golos, mas quando veio o Inácio eu percebi que estava a perder terreno. Acabei por ser emprestado ao Leixões. Mesmo só tendo estado no Moreirense na primeira metade da época, foi um orgulho para mim a conquista deste troféu. Lembro-me dos meus colegas fazerem videochamada comigo e a dizerem que esta taça também era minha. Acabei por viver aquilo como se ainda jogasse lá.

Este ano regressas à UD Oliveirense, depois de teres representado o emblema de Oliveira de Azeméis em 2017/2018. Esta já é a tua casa?
Sempre me trataram muito bem. Os meus colegas sempre me acolheram bem. Tudo isto acontece numa altura em que recuperei de uma lesão e eu precisava disso. É uma casa que eu conheço e onde me sinto muito confortável.

Havia a possibilidade de assinares por outro clube?
Sim, em Portugal e lá fora. Optei por ficar por aqui porque precisava de um clube que me permitisse estar confortável e que já conhecesse as minhas qualidades.

E, tendo em conta os números, foi uma boa decisão…
Foi. Já marquei cinco golos em oito jogos. Estou num bom momento, mas isto só acontece devido ao apoio dos meus colegas de equipa. A maneira como eles me tratam e a forma como nós trabalhamos ajuda um profissional a melhorar. O individual só se destaca se o coletivo estiver bem.

 

“Quando me deram a notícia de que ia ficar seis meses parado foi muito difícil. Custou-me a aceitar”


Foi complicado lidar com a lesão que tiveste na altura em que jogavas no Moreirense?
Foi a minha primeira lesão grave e não foi fácil lidar. A lesão aconteceu na altura em que o treinador do Moreirense na altura, Manuel Machado, acreditava muito nas minhas capacidades. Quando me deram a notícia de que ia ficar seis meses parado foi muito difícil. Custou-me a aceitar, mas depois a minha família e amigos fizera-me perceber que há coisas muito mais graves na vida. No Moreirense sempre foram impecáveis comigo, desde os diretores ao preparador físico. A recuperação até correu muito bem, porque acabei por ficar apto antes da data prevista.

Ao serviço do Moreirense, conquistou uma Taça da Liga na época 2016/17.

 O apoio da família foi importante…
Sem dúvida. Não estou a mentir quando digo que a primeira semana foi muito complicada. Sofri mais, mas depois passou. Sou uma pessoa que tenta pensar sempre nas coisas positivas. Os meus amigos, família e médicos foram muito importantes neste momento.

Chegaste a Portugal com que idade?
Eu nasci na Guiné-Bissau e aos dois anos vim para Portugal. Eu não conheço muito da Guiné. Nunca mais lá voltei. Tenho conhecido muitos guineenses no futebol e estou a tentar criar ligações com o meu país de origem.

Tens dupla nacionalidade?
Sim, tenho.

Qual dos dois países gostavas de representar? 
Qualquer um dos dois, mas o meu maior sonho sempre foi representar a seleção portuguesa. Eu costumo falar com o Pelé (Mónaco) que agora representa a seleção da Guiné-Bissau sobre as condições. Ele tem-me dito que a seleção da Guiné é top e que as pessoas vivem o futebol. Apesar disso, ainda é um país onde o futebol está em crescimento. 

Pensas em voltar a estudar?
Eu estudei até ao 12.º ano e depois não continuei. Por acaso, é uma coisa que penso muitas vezes. Eu gosto de estudar. Nós [jogadores] nunca podemos pensar só no dia de hoje. Temos de pensar sempre no dia de amanhã, pois nunca sabemos o que pode acontecer na nossa carreira. Nem todos conseguem o que o Cristiano Ronaldo e o Messi conseguiram. Há que saber gerir as coisas, porque mesmo jogando futebol podes estudar.


Perfil
Nome: Ença Fati
Data de nascimento: 11 de agosto de 1993
Posição: Avançado
Percurso como jogador: SD Herrera (Espanha), Real, Moreirense, Leixões, Moreirense e UD Oliveirense.