“A vontade de competir é tanta que se os adeptos tiverem de ficar em casa a ver, que assim seja”


José Semedo confessa-nos que não soube lidar bem com a paragem do campeonato, devido à falta de competição.

José Semedo confessa-nos que não soube lidar bem com a paragem do campeonato. A falta de competição e a incerteza relativamente ao futuro levaram o jogador do Vitória de Setúbal a passar noites em claro, mas a rotina que impôs para si e para os seus fê-lo ver que o tempo em família foi a melhor coisa que podia ter acontecido.

 Como é que tens passado os dias?
Agora, que já vemos a luz ao fundo do túnel, já começo a passar os dias com mais ânimo e mais força no sentido em que já faltou mais para começar a treinar e estar no meu habitat natural. No início, naquelas primeiras duas semanas, sem haver previsão de regresso, foi terrível a nível funcional porque não estávamos preparados para parar completamente, para estar sem sair de casa, sem ir ao centro de treinos e sem sentir o cheiro da relva.
No início foi muito difícil até encontrar as rotinas de forma a conseguir passar bem o dia, tranquilo e mentalizado de que vai passar.

Quando não estás a treinar, como é que ocupas o tempo?
Tento treinar de manhã como se fosse ao centro de treinos, fazer tudo com mais calma de forma a que a manhã passe rápido até chegar a hora do almoço. Normalmente tento fazer uma sesta de uma hora a seguir ao almoço, das 14h às 15h, e à tarde volto a fazer um treino para ocupar esse período. Esse fazemos todos juntos, em família, para ser uma coisa mais divertida, mas, ao mesmo tempo, de trabalho, limar algumas arestas. Deixo sempre algum trabalho para fazer com os miúdos e com a minha esposa. É assim que tento passar o dia.
Agora tem sido mais fácil por saber que estamos quase a começar, provavelmente em meados de maio. Já estamos mais perto do relvado e da dinâmica da competição porque o nosso corpo precisa de transpirar de uma outra forma e libertar energia que só conseguimos dentro das quatro linhas.

Como é que as coisas estão a ser vividas na tua área de residência?
Graças a Deus, aqui está tudo tranquilo. Aqui no nosso condomínio está tudo bem. De vez em quando vejo alguns vizinhos a fazer uma caminhada aqui na parte de trás, que é privada. À tarde, a uma hora em que já não vejo ninguém, vou ali fora com as crianças fazer um treino de bola para apanharmos um bocadinho de ar e espairecer. Graças a Deus, está tudo bem aqui. Vejo que têm seguido as regras de contingência para que, logo, logo, possamos estar todos aí fora e em segurança.

Estás em casa com quem? Com a tua mulher e os teus filhos?
Sim. Tenho dois rapazes. Estamos os quatro aqui em casa.

Que idade é que eles têm?
Têm 11 anos. São gémeos.

Como é que lhes explicaste este momento?
Nem foi preciso. Por estarem na escola, eles perceberam logo o que se passava. Lembro-me de chegarem a casa e dizerem: “pai, já houve mais um caso em Lisboa. Pai, já houve mais um caso não sei onde”. Vinham da escola e o tema de conversa era esse. A informação está tão “agressiva” e aberta que as crianças absorvem rápido tudo o que se passa. Tanto que passei a não permitir que eles ouvissem tanta coisa aqui em casa, para que possam estar mais tranquilos. Os miúdos, pelo menos os meus, quando há uma novidade não largam aquilo. Vi que aquilo estava a incomodá-los, viam que havia X mortos em Itália, X em Espanha, estavam preocupados e, para os proteger, comecei a ligar a televisão e a pôr logo num canal de filmes ou de bonecos para se abstraírem. Depois começaram a escola online, entraram numa rotina em que estudam de manhã e treinam comigo à tarde. Gerimos o dia dessa forma.

Falas diariamente com a tua família, nomeadamente com pais e avós?
Todos os dias! Com a minha mãe, que já é uma pessoa de idade, com a minha tia, irmã do meu pai, que também já tem 85 anos, com o meu tio…. Falo todos os dias com eles e sempre com receio. Na zona onde vivem não há muitos casos e não levam aquilo tão a sério. Já me chateei várias vezes com a minha mãe por ter saído. Veem pessoas na rua e pensam que não é tão grave como a televisão transmite. No início não levavam as coisas tão a sério, mas, como a situação começou a apertar, a minha mãe já não tem saído de casa e está tudo tranquilo.

E falas regularmente com os teus colegas de equipa?
Sim, temos um grupo. Estamos sempre a trocar mensagens e fazemos treinos via Zoom, toda a equipa. Treinamos todos juntos três vezes por semana: temos sempre a nossa conversa em videochamada dez minutos antes do treino, depois treinamos uma hora e, no fim, voltamos a estar na conversa, com as nossas brincadeiras, aquele “epá, estás a ficar gordo” ou “estás com uns grandes abdominais”…. Vamos sempre mantendo o contacto.

Sentes que, apesar da distância física de família e amigos, acabamos por estar mais próximos agora?
Acho que sim. Agora acabamos por falar mais com as pessoas. Tenho passado mais tempo ao telefone devido a isso. Como não podemos estar com as pessoas, compensamos dessa forma. Sentimos saudades de encontrar alguém para dar um abraço ou de sair para ir tomar um simples café com um amigo. Acabamos por valorizar mais aquilo que tínhamos e que nos tiraram devido a esse vírus.

Já sentiste alguma ansiedade ou tens lidado bem com o lado psicológico?
Lembro-me de que íamos jogar à Madeira, com o Marítimo, quando parou o campeonato. O primeiro fim-de-semana ficámos em casa. Tudo bem, não há jogo, não há treino. Acabou por ser um fim-de-semana normal, de descanso. Depois entrou a primeira semana e passei-a bem, a pensar que na segunda-feira voltava a normalidade. Mas voltou tudo ao mesmo: não há ida ao centro de treinos, não há estar em competição, não há preparar um jogo, não há essa adrenalina, e foi aí que me bateu. Passei dois ou três dias em que nem conseguia dormir por não me conseguirem informar sobre o futuro. Aí caiu mesmo a ficha.
Quando estávamos para ir à Madeira eu era apologista de não irmos a jogo pela nossa segurança. Éramos para jogar à porta fechada e não era apologista porque preferia jogar com adeptos, há mais entusiasmo e mais alegria, mas agora, depois de passar pelo que passei, que a gente jogue sem adeptos. A vontade de competir é tanta que se os adeptos tiverem de ficar em casa a ver, que assim seja.

Temes que seja possível voltarmos a passar por uma situação parecida?
Acredito que possa vir uma outra crise, mas não de saúde. Isto foi uma pancada muito forte. Não acredito que volte outra situação como esta. Bateu a nível de saúde e a nível económico vai ter um impacto estratosférico. Acredito plenamente que possa haver outro tipo de crises, mas não outra deste género. O ano de 2020 vai ficar para a história.

És crente? A fé tem-te ajudado a superar este momento?
Sim, sem dúvida. Não tenho religião, acredito no meu Deus. Cresci numa família católica, mas hoje não posso dizer que sou de tal religião. Acredito que existe uma força acima de nós. Uns chamam-lhe Alá, outros Buda, outros Deus…. Acredito que essa força é só uma, mas não lhe ponho um nome ou uma religião. O que é a fé e o bem existe em qualquer religião. Rezo todos os dias, acredito e ajuda-me bastante, a mim e à minha família. Vou buscar muita força à minha crença. É muito forte, está acima de tudo.

Descobriste alguma qualidade ou defeito que não sabias que tinhas?
Uma das coisas que descobri com a minha mulher é o quão importante é sermos abençoados por termos duas crianças e por nos termos um ao outro. Agora, que passamos mais tempo juntos, não me lembro de termos passado tanto tempo juntos nestes 16 anos, é dia e noite, é que vemos a dimensão do amor que temos por eles e um pelo outro. As crianças vão para a escola, eu vou treinar, passo o dia inteiro sem eles, depois jantamos, estamos um bocadinho e eles vão para a cama. Por dia passamos três ou quatro horas com eles. Agora vejo que falam de coisas que vejo que já não são crianças, que estão a ficar homenzinhos.
Às vezes as coisas não acontecem por acaso: se não passássemos por esta fase, amanhã os meus filhos iam fazer a vida deles e nunca teríamos tanto tempo juntos como estamos a ter agora. Foi a melhor coisa que aconteceu neste período: passar 24 sobre 24 horas sem os perder de vista.

 

“SE NÃO PASSÁSSEMOS POR ESTA FASE, AMANHÃ OS MEUS FILHOS IAM FAZER A VIDA DELES E NUNCA TERÍAMOS TANTO TEMPO JUNTOS COMO ESTAMOS A TER AGORA.”

 

Decidiste mudar alguma coisa futuramente? Alguma resolução pós-isolamento?
Uma situação como esta prova-nos que temos de viver a vida com mais intensidade. Quando nos encontrarmos com um amigo não devemos deixar de dizer o quanto gostamos dele, não sabemos quando vai ser a última vez que o vamos ver.
Tenho amigos que trabalham noutros países, amigos que são família mesmo, e não passava dois meses sem os ver, tal como acontece agora. Sabíamos que todos os meses estávamos juntos e agora não sabemos quando o podemos fazer. Quando estamos juntos temos de louvar e celebrar. Quando isto passar, sem riscos de haver contágio, as pessoas vão divertir-se e aproveitar mais. E vão aperceber-se da importância que é ter uma família lá fora, além da que têm em casa. Se soubermos escolher, vamos ter uma grande família lá fora.