Carlos na defesa da saúde mental
Passou pela Primeira Liga, jogou em ligas estrangeiras, ouviu o hino da Liga dos Campeões e somou títulos.
Aos 40 anos, continua a jogar, agora no Amarante, no Campeonato de Portugal, porque é o que lhe traz luz à vida. Fora do campo, o foco apaga-se e sofre. Carlos revela, uma vez mais,que é um exemplo, agora por contar a sua história a todos os jogadores.
Apesar de ainda estares no ativo, tens 40 anos e o final inevitavelmente aproxima-se. Foi por isso que procuraste o Sindicato nesta fase da carreira?
Confesso que foi mais por ser amigo do Joaquim Evangelista e estar numa fase em que não sabia o que haveria de fazer porque estar no final da carreira com a idade que tenho e o facto de ser chamado de velho…. É um murro no estômago com esta idade considerarem-nos velhos para a atividade, mais ainda na minha posição. Isto é que me fez fugir de tudo e refugiar-me em casa. Passado algum tempo, um dia o Joaquim Evangelista ligou-me e decidi voltar depois de falar com ele.
Na entrevista que deste há uns meses ao Expresso disseste que estiveste quase um ano sem sair de casa. Em que altura é que isso aconteceu?
Foi depois da época que fiz no Vilafranquense, quando pensei que ia terminar a carreira. Sempre tinha dito que acabava ou no Vilafranquense, onde comecei a jogar, ou no Boavista. No Boavista não aconteceu e decidi fazê-lo no Vilafranquense. E foi no ano seguinte, que foi difícil, por não saber o que fazer a seguir ao futebol.
"Cheguei a não sair de casa durante três meses e a minha família não soube."
Depois foste para o Limianos. O que é que te fez querer continuar a jogar?
Eu estava em casa, não saía de casa, e volto a jogar por causa do Jorge Andrade. Foi fazer um torneio à Suíça e insistiu para que fosse com eles. Ele era aquela tal pessoa que todos os dias me ligava, para ir almoçar. Onde eu moro há uns restaurantes em baixo e cheguei a mentir a dizer que não estava em casa, só para não sair de casa. E ele foi a pessoa que me tirou de casa para irmos jogar à Suíça. Foi um convívio giro, foi o reviver daquilo a que estávamos habituados, com jogadores que toda a gente conhece, como o Nuno Gomes, o Veloso, o Miccoli, e depois do jogo que fiz, a maior parte deles, meio a brincar, disse que eu estava bem e que se quisesse continuar a jogar, por que não? Fazer aquilo que quero e que gosto em vez de acabar a carreira só porque estou velho. Foi assim que surgiu a oportunidade de ir para o Limianos e decidi experimentar.
Quando é que começaste a receber apoio psicológico? Foi nessa altura?
Foi. Comecei a ir para o Porto, para o doutor Pedro Teques, também aconselhado pelo Joaquim Evangelista, e tenho um acompanhamento semanal.
Na prática, esse acompanhamento passa por quê? Uma conversa de uma hora?
Passa por conversas. Não tem hora determinada, não tem duração. Pode ser uma hora, como serem três. Falo da minha vida, do que se passa, e tentamos fazer objetivos para poder atingi-los.
O psicólogo também te ajuda a mentalizares-te parao final da carreira?
Sim. Aliás, ajuda-me a pensar nas saídas para o pós-futebol, o que chamamos de plano B. Quando acabar o futebol, o que é que vou fazer? São conversas direcionadas para aí.
A estabilidade familiar é importante para superar os estados menos positivos?
É muito importante. A minha família para mim foi muito importante nesse momento, apesar de, confesso, não saber muito bem o que se passa comigo. Pensa que está tudo bem, que o meu problema é só não saber o que vou fazer a seguir, porque também me fecho no meu mundo e fico ali. Lembro-me que cheguei a não sair de casa durante três meses e a minha família não soube porque fazia a mesma rotina de sempre com a minha filha. Quando estava gente em casa fazia como se estivesse a viver, no entanto, quando não estava ninguém em casa eu não saía da cama. E a minha filha, mesmo nesta altura, se calhar não sabe ao certo o que tenho.
Há alguma razão para se verificarem tantos divórcios entre futebolistas?
Acho que, face à ausência de rotina que o jogador de futebol tem, dos hábitos que tem, quando deixa de os ter passa mais tempo em casa e não está habituado. Acaba por se saturar mais, às vezes as mulheres também não têm paciência para suportar isso, daí haver esses problemas.
A saúde mental é um tema ainda pouco falado, embora o Sindicato alerte para a sua importância. Aconselhas os jogadores mais novos a procurar apoio psicológico?
Acho que é muito importante serem acompanhados e procurarem apoio psicológico desde o início da carreira. É importante que um jogador se prepare desde o início para o final da carreira. Provavelmente não me aconteceria o que está a acontecer agora.
Mesmo que sintam que estão bem e não precisam de apoio?
É fundamental. Acho que precisam, e agora é fácil falar porque passei por isto, porque o futebol é um desporto que exige muito dos jogadores. Existe muito foco, muita pressão. O jogador de futebol muitas vezes quer ser o melhor de todos, acaba por focar-se numa coisa e tentar dar o máximo todos os dias, e esquece-se do que se passa à volta. Não sabemos a realidade da vida. Temos pessoas que nos fazem tudo. Em 2009 fiz uma casa e não sabia que era preciso ir à EDP para pedir um contador. Não sabia. Não sei fazer o IRS, por exemplo. Porque temos gente que nos faz isso tudo e acabamos por não saber o que nos rodeia, a realidade da vida.
"É importante que um jogador se prepare desde o início para o final da carreira. Provavelmente não me aconteceria isto."
Quando a carreira acaba, um jogador sente-se isolado nesse aspeto?
A carreira acaba e é como se fosse um apagar de luzes. Essas pessoas também desaparecem, parece que se fica ali sozinho. Não é tão linear como isto, mas é a sensação que se tem.
O André Gomes também falou publicamente da depressão que sofreu em Barcelona. Sentes que a saúde mental é um tema tabu para os jogadores ou já se fala abertamente?
Não, ainda é um tema tabu e não é fácil. Confesso que só mesmo pelo Joaquim Evangelista, senão não estava aqui. Não é fácil falar sobre isto porque acabamos por expor a nossa vida, que é a realidade, e quando digo a nossa vida acaba por ser um pouco de todos os profissionais de futebol, acredito que nos outros desportos de alta competição também exista o mesmo, e as pessoas acabam por se isolar. Ainda hoje, estou a jogar e isolo-me bastante.
Mesmo estando no ativo?
Mesmo estando no ativo. Tive a sorte de poder estar no Amarante, um clube com pessoas espetaculares. Tem uma Direção fantástica e um balneário espetacular. É o sítio onde me sinto bem. A treinar. A partir do momento em que isto acaba, quero é estar sozinho no meu quarto. Vou ao restaurante e logo a seguir vou refugiar-me no meu quarto. Estou sozinho, estou sossegado. Muitas vezes tenho amigos e colegas que me ligam, mas nem consigo atender. Não tenho paciência. Não tenho vontade de falar.
Mas como é quando estás com os teus colegas no balneário?
É uma coisa normal. Aí sou uma pessoa normal. É como se estivesse no balneário do Boavista, ou de uma equipa que está a jogar a Liga dos Campeões, e levo a coisa a sério. Sou uma pessoa extrovertida, que gosta muito de brincar. Acaba por ser uma coisa normal e esqueço o que estou a viver, o que estou a passar. Só me volto a lembrar quando acaba o treino. Geralmente sou o primeiro a chegar e o último a sair. Quando acabo o treino sei que vou tomar banho, vestir-me, jantar e quero ir para casa.
Jogaste em grandes competições, como a Liga dos Campeões, submetido a enorme pressão. Lidavas bem com a ansiedade nesses momentos?
Sim. Acho que o maior problema para um jogador de futebol é o que as pessoas pensam dele e muitas vezes não é correto, não fazem jus àquilo que o jogador faz dentro do campo. A ansiedade é uma coisa normal. Se um jogador não souber lidar com a pressão não pode jogar futebol. Estar num estádio com 100 mil pessoas não é fácil. É preciso ter uma boa saúde mental para conseguir fazer as coisas.[risos] Acho que é mais a crítica. O jogador não consegue lidar é com a crítica a seguir ao jogo. Ao entrares em campo num jogo da Liga dos Campeões sabes que tens milhões de pessoas a ver. Esse é logo o pensamento inicial que se tem. Cada vez que entrava em campo, quando se ouvia o hino da Liga dos Campeões, o mesmo para a Liga Europa, competições que são vistas pelo mundo inteiro, eu pensava: “hoje não posso facilitar. Não posso dar um frango”. É no que mais se pensa: poder dar o melhor e rezar que se faça um bom jogo.
Porquê?
Com o receio do que os outros vão dizer e criticar.
Nessa fase tiveste algum apoio psicológico?
Não. Nunca tive.
Essa motivação tinha de vir de dentro de ti?
Exatamente. Depois também existe uma grande sobrecarga de jogos, as competições internas, as taças e o campeonato, depois junta-se a Liga dos Campeões, e há jogos que nem dão vontade de jogar. Numa semana estás a jogar com o Real Madrid e no fim-de-semana estás a jogar com uma equipa do teu campeonato que está a lutar para não descer de divisão. Não tens vontade. Só o facto de ires para estágio já te deixa sem vontade. Tens de ir buscar essa vontade a algum lado. E eu pensava: “tenho de trabalhar para sair daqui”.
Depois de uma derrota precisamente na Liga dos Campeões diante do Real Madrid, em 2006, o dono do Steaua, o polémico Gigi Becali, afirmou que pagava 100 mil dólares para te levarem. Como é que superaste esse momento?
Isso foi uma história engraçada e nunca comentei isto. Lá está, não falo. Fugi sempre de jornalistas e de fotógrafos. Na Roménia imitavam muito os jornalistas ingleses, tinham muito a mania dos tabloides, e eu era perseguido pelos paparazzi. Cheguei a estar no trânsito, baterem-me no vidro, eu pensar que era para pedirem um autógrafo, e tirarem uma fotografia. Era perseguido, tive de mudar de casa quatro vezes na Roménia! Isso foi depois de um jogo na Liga Europa contra o Bétis, em que fiz um bom jogo, e tenho um convite para ir para o Bétis. Eu sempre a pedir para me deixarem ir embora, mas eles não deixavam. E eu pedia todos os dias, de manhã à noite. Já pensava: “Bétis, Espanha. Posso ir a casa de carro”, pensa-se no dinheiro porque quando se está na Liga Europa basta fazer um jogo e a cotação sobe, e só pensava nisso, não pensava em mais nada. Eu ia treinar mas só o meu corpo é que ia, eu só pensava em vir para Portugal. Vamos à meia-final da Liga Europa desse ano e, no espaço de seis meses, acontece a meia-final, somos apurados para a fase de grupos da Liga dos Campeões, e aparece-me o Sevilha. Ainda pior! Tinha o Sevilha e o Bétis, curiosamente da mesma cidade, e eu era um menino a gritar para me ir embora. Chateava o presidente, mas quem mandava era o dono do clube, esse tal Gigi Becali. Quando o Real Madrid vai jogar à Roménia, como os dois clubes são rivais da mesma cidade, só perguntavam para onde é que eu ia. Foi o que fizeram com o dono do clube. Daí ele ter essa reação, esse comentário infeliz de dizer que dava 100 mil dólares a quem me levasse. Quando saí do balneário para a zona mista perguntaram-me o que achava desse comentário. E eu disse: “se chegar a casa e vir que isto é verdade, amanhã já não estou cá”. E foi o que aconteceu. Cheguei a casa, vi aquilo, na altura tinham-me oferecido um jipe, tinha um contrato de imagem com a Mercedes, pus tudo dentro do jipe, chamei o reboque, mandei para Portugal e apanhei o primeiro voo. E não quis voltar. Depois estou para ir para o Shakhtar e eles não me querem dar o certificado internacional. E pedi a rescisão do contrato. Queriam que voltasse, não queriam que saísse da Roménia. Ainda hoje, passados tantos anos, recebo imensas mensagens dos adeptos romenos. O Steaua passou uma fase, acho que foram dez anos, sem ganhar nada, e eu em dez meses ganhei quase tudo. É lógico que não joguei sozinho, mas estive lá quando isso aconteceu. Ganhei quase tudo.
"Existe uma grande sobrecarga de jogos, as competições internas, depois a Champions, e há jogos que nem dão vontade de jogar."
E a tua relação com o Gigi Becali? Como é que ficou depois disso?
Nunca falei com ele. Sei que quando me venho embora, o presidente, que foi a pessoa que me veio cá buscar, também sai do clube. Tanto que hoje o presidente era o diretor financeiro da minha altura e cada vez que vem a Portugal passa férias na minha casa. Ele e a esposa. Vem ver jogadores, aproveita e passa as férias na minha casa. Muitas vezes. Sinal das boas relações que criaste. Não criei muitas, mas, felizmente, as poucas que criei foram boas e saudáveis. Faz parte da minha personalidade: ser verdadeiro e não andar com rodeios.
A Roménia foi a tua primeira experiência no estrangeiro, mas ainda jogaste no Irão, na Turquia e em Angola. Em que liga mais gostarias de ter jogado? Na espanhola?
Era a espanhola. Isso é uma coisa que vai ficar para sempre aqui entalado. Podia ter jogado e não joguei.
Nasceste no Congo, mas jogaste pela Seleção de Angola. Como é que surgiu esse convite?
Esse convite surge porque em 2006 sou pré-selecionado para ir à Seleção e era convocado para a Seleção B, que ainda havia na altura. Era eu, o Bruno Vale e o Beto. A seguir ao último jogo do Torneio Vale do Tejo, o Scolari falou comigo e disse que me ia levar ao Mundial da Alemanha. Recebi todas as pré-convocações e quando chega a convocação final não fui convocado. Convocou o Bruno Vale. Caiu-me o Carmo e a Trindade. Aí foi a minha primeira frustração nesta vida de profissional de futebol. Era uma coisa que queria tanto, por que tanto lutava, que me manteve na Roménia, e não fui convocado. Uma ou duas semanas depois, o Bruno Vale lesionou-se num jogo da Seleção, não sei se partiu o dedo do pé, e pensei que fosse: “agora não tem hipótese, vai ter de me convocar”. Convocou o Paulo Santos. Chorei, chorei…. Volto para Portugal para jogar no Rio Ave, já a seguir ao Irão, também por questões familiares, por causa da minha filha, e não havia guarda-redes para a Seleção. É no ano em que aparece o Rui Patrício. Nessa altura falava-se muito de mim, e do Rui, e o selecionador era o [Carlos] Queiroz, com o Agostinho Oliveira, que era o meu treinador na Seleção. Pré-convocado novamente e, chega a altura da convocação, não sou convocado. Estava no Rio Ave, os jornalistas perguntaram-me e eu falei. No mesmo dia, o Manuel José, que estava na seleção angolana, ligou-me a perguntar se queria jogar por eles e eu aceitei. Não sei se foi aquela coisa, por ter sido no mesmo dia, por estar como estava. Já tinha sido abordado antes, eu e o Bosingwa, para representarmos a seleção de Angola, e naquele dia nem pensei. Havia a CAN em 2010 e foi assim que fui para a seleção angolana.
"Quando vi que o meu nome não apareceu caiu-me tudo. Deu-me vontade de chorar. Caiu-me um balde de água fria."
Como é que superaste essa frustração de não seres convocado para o Mundial?
Estava num restaurante, já não me lembro com quem é que estava a falar aqui de Portugal, e foi pelo telemóvel. Estávamos a ouvir a convocação na televisão. Tinha o telemóvel em cima da mesa, não estava sozinho, estava mais gente, porque estava convencido de que ia ser convocado, e quando vi que o meu nome não apareceu caiu-me tudo. Deu-me vontade de chorar. Caiu-me um balde de água fria. Naquela noite, se pudesse, deixava de jogar. Já não tinha vontade de ir treinar no dia a seguir. Fiquei com azia. Ia treinar e era bolas para o ar…. Não tinha vontade nenhuma de ir treinar.
Jogaste na Primeira Liga, na Liga dos Campeões, foste campeão na Roménia, disputaste duas CAN….Em que altura te sentiste mais valorizado como jogador?
Acho que me senti valorizado em todos os clubes por onde passei. É engraçado, mas a valorização de um jogador tem diferenças de clube para clube e se calhar sabe-me melhor, e tem um sabor mais especial, a maneira como sou valorizado no Amarante: o carinho que é dado, a forma como se é tratado, o respeito que se tem. Não nos sentimos um simples objeto de mercado. No fundo, o futebol é isto: é um boneco que está aqui para se valorizar e para ser vendido ao melhor preço possível. O que estou a sentir, e o que me está a dar alegria para ir treinar todos os dias, é a maneira como sou tratado no Amarante, a valorização que me é dada, o respeito que me é dado pelo meu passado, isto desde o jogador mais novo ao mais velho, passando pela Direção, rouparia, diretores, as próprias pessoas da cidade, dos restaurantes. É uma coisa que nos faz sentir orgulhosos. Todo o ser humano gosta de ser elogiado, quando se é reconhecido o trabalho que foi feito. O clube onde me senti mais valorizado, de uma maneira saudável, foi no Amarante.
Depois de teres passado por esses grandes palcos que referi, hoje estás no Campeonato de Portugal. É quase como regressar àquele romantismo dos tempos de miúdo, de jogar por amor ao futebol?
Nunca tinha pensado nesse lado, mas garanto-te que há muitos jogadores que não estão [a jogar] no Campeonatode Portugal por vergonha. Por não quererem assumir que passaram da Primeira Liga para o Campeonato de Portugal. E eu também tive essa vergonha numa fase inicial, só que a vontade e o gosto de jogar à bola eram muito superiores. Ainda hoje penso nisso. Se as coisas no treino não são como nós queremos, penso que se fosse na Primeira Liga ou noutra liga isto não acontecia. Em todos os trabalhos, nunca ninguém está satisfeito. Mas quando se chega à parte do jogo, estou noutro mundo. Vou para outro mundo, não sei o que se passa fora. Desde que o árbitro apita para começar o jogo até que apita para acabar, estou noutro mundo. Sinto-me gente. Não sei explicar. O problema é que quando acaba o jogo, e eu tenho o hábito de ir atrás porque vou fazer uns alongamentos, quando volto já não tenho ninguém no balneário. Antigamente passávamos a vida no balneário, ficávamos e conversávamos. Agora a malta mais nova quer é tomar banho e ir para casa. Eu chego e não está ninguém no balneário. E aí parece que volta outra vez a apagar-se tudo. Parece que são os focos que se apagam. Acende e apaga. E quando acende fico encandeado, não vejo o que se passa lá fora. Estou tão focado no que se passa dentro do relvado que o que se passa fora a mim não me interessa. Nada, zero.
A propósito dessa expressão do foco que se acende: qual foi o jogo mais marcante da tua carreira?
Foi em Middlesbrough, a meia-final da Liga Europa. Foi uma meia-final épica! Tínhamos [Steaua] ganho 1-0 em casa e perdemos lá 4-2 depois de estarmos a ganhar por 2-0.
Foi por sentires que estiveste tão perto de uma final europeia?
E o ambiente. Quem ganhou aquela meia-final foram os adeptos. Estávamos a ganhar 2-1 e eles, a 15 minutos do fim, fazem três golos. Mas foram os adeptos que os levantaram porque eles estavam mortos. Eles estavam mortos, discutiam uns com os outros. Tinham jogadores como o Viduka e o Jimmy Hasselbaink. Houve um lance, uma falha do nosso defesa direito, que quer dominar a bola, a bola passa por baixo e o jogador do Middlesbrough ganha a bola e faz um cruzamento. E ele falha a bola com um grito dos adeptos. Começou aquele cântico, foi assustador! Sofri os golos, fiquei chateado, fiquei triste, mas ao mesmo tempo olhava à minha volta: “fogo, que coisa linda! O que é isto? Onde é que eu estou?”. E foram eles que ganharam o jogo.
"Não sei o que quero ser a seguir. Estou tão confuso que não sei. Poderá surgir uma oportunidade, um convite, nunca se sabe."
E qual foi o avançado mais temível que tiveste pela frente?
Nunca me vou esquecer do [Ruud] van Nistelrooy. Fez-me um golo que ainda hoje estou para saber como. Ele de costas para a baliza, recebe a bola só com um simples toque, vira-se e faz-me um chapéu. Ainda hoje, às vezes, vejo esse golo quando é o sorteio da Liga dos Campeões. Foi eleito um dos melhores golos da UEFA na altura.
Outra prioridade do Sindicato passa pela educação financeira. Com que idade começaste a pensar no pós-carreira?
Para ser sincero, nunca pensei no pós-carreira. Penso agora e, se for sincero, muitas vezes tem de ser o Pedro Teques a falar, e a própria professora, a Susana, que também foi através do Sindicato, que tem de estar sempre a ligar. Se não ligar também fico no meu canto. Mesmo sabendo o que já me aconteceu, o que se passa e o que se poderá passar a seguir, estou mais preocupado em ir treinar. Depois de treinar pareço um parasita. Fico ali, um vegetal, a ver televisão, a dormir e a descansar.
Representaste alguns clubes importantes. Fizeste contratos que te garantiram uma almofada financeira para o futuro?
Fiz, mas há muitos jogadores de futebol que não têm essa possibilidade porque não é fácil poder jogar em clubes onde se recebe sempre. Ainda hoje tenho clubes que me devem dinheiro e estamos a falar de coisas de 2004, de 2003, e nesse momento também é preciso ter sorte com quem se faz os contratos e receber na totalidade.
Investiste em imobiliário ou nalgum negócio?
Investi em vários negócios, mas investi mal porque nunca quis saber de nada. Confiava nos amigos, os ditos amigos, aquelas pessoas que nos faziam tudo, e investi mal.
Conheces casos de antigos colegas que vivam com alguma dificuldade porque não precaveram o futuro?
Conheço bastantes. Nunca tive pena de nenhum, mas acaba-se por sentir a dor que ele tem. Em vez de ficar com pena e de lamentar, toma-se a dor por que ele está a passar. Não deve ser fácil. Só de pensar que não podes fazer isto e aquilo, coisas banais. É normal, se ganhas bem, que vás comprar um bom carro, coisas que te dão um maior conforto, mas, por outro lado, também não fazes uma vida assim… Se calhar passas mais tempo a proporcionar uma boa vida aos outros do que a ti próprio. É o que acaba por acontecer.
Sabemos que voltaste aos estudos. Em que área estás a estudar?
Neste momento estou a acabar o 12.º. Depois quero ver se me vou licenciar em gestão desportiva.
E a carreira de treinador? Alguma vez pensaste nisso?
Isso é uma conversa que tenho com o doutor Pedro: não sei o que quero ser a seguir. Estou tão confuso que não sei. O caminho que nós tomámos foi tentar absorver tudo o que apanhar e, ao fim de ter tudo, decidir o que posso fazer. Poderá surgir uma oportunidade, um convite, nunca se sabe. Aí sim, com as coisas na mão, saber se vou fazer ou não, ou se vou ter o gosto de o fazer ou não.
"Nos momentos mais difíceis, que acabam por ser os mais importantes, o Sindicato aparece sempre."
Mas o teu futuro passa pelo futebol?
Acho que sim. Eu brincava muito e dizia que quando acabasse o futebol ia rapar o cabelo e não queria saber mais de futebol. Mas a nossa vida é isto. A nossa vida é o futebol e acho que podemos, os antigos jogadores, que estiveram lá em cima, melhorar o futebol cada vez mais, por serem pessoas conhecedoras do que se passa lá dentro, em vez de estarmos a entregar o futebol a outras pessoas. Também é importante ter pessoas formadas nesse aspeto, mas passar lá, estar lá, é totalmente diferente. Não tem nada a ver. Vê-se muita coisa no campeonato português, por exemplo, de ser gerido por pessoas que não percebem nada de futebol e que só veem o futebol como dinheiro. Acabam por destruir coisas que não deviam ser destruídas, que no passado tinham muito valor.
Por último, qual é a tua opinião sobre o trabalho do Sindicato no futebol português?
Sou suspeito para falar disso porque, para já, tenho uma amizade muito grande pelo Joaquim, conhecemo-nos há muitos anos, antes de ele ser presidente, e sempre fui uma pessoa que, não estando presente, fui sempre lembrado pelo Sindicato, em quase todos os momentos. É fácil o Sindicato enviar uma carta a dar os parabéns por teres ganho um campeonato, por teres ganho uma taça, por seres o melhor em campo, mas o Sindicato também liga nos momentos mais difíceis. Quando aconteceu isso com o Gigi Becali, por exemplo, o Sindicato ligou-me para saber se queria pôr um processo por difamação. E eu recusei. Nos momentos mais difíceis, que acabam por ser os mais importantes, o Sindicato aparece sempre. E é onde notamos mais, porque nos momentos bons aparecem os parabéns de todo o lado.