“Foi muito difícil cair no esquecimento e ficar estagnado”


Aos 33 anos, não quer precipitar a transição de carreira, mas está preparado para o processo.

Encara sem dramas o encerrar de uma carreira preenchida, com conquistas, retrocessos, sucessos e uma abnegação ímpar que o impediu sempre de virar a cara à luta. João Dias, aos 33 anos, quer continuar a jogar, sabendo que o fim é inevitável, mas está preparado para uma nova vida: escudado por licenciatura e mestrado na área do desporto, apaixonado pelo jogo e pelo treino, tem como certo o rumo a seguir, sempre no futebol. Atingiu o topo da Europa em 2003, frente a nomes como David Silva, José Manuel Jurado e ao lado de “irmãos de armas” como Miguel Veloso, Paulo Machado, Vieirinha ou João Moutinho, sagrando-se campeão europeu de sub-17. A queda veio logo a seguir, foi abrupta e deixou-o à beira do final da carreira antes ainda de a ter começado: o vazio com que se deparou na transição da formação para o futebol sénior deixou-o desemparado, mas fê-lo crescer, em tenra idade, e preparou-o para enfrentar as batalhas que se seguiram.

 

 

Tiveste um arranque auspicioso na carreira, sobretudo na formação – chegaste mesmo a sagrar-te campeão europeu sub-17 por Portugal em 2017. O que podes contar dessa fase?
Fiz a minha formação no Braga, desde as escolinhas até aos juvenis, passando por infantis e iniciados, criei amizades para a vida, tenho a certeza que foi ali que criei bases para o que consegui atingir hoje, com 33 anos. Não tenho dúvidas nenhumas que as bases foram lançadas na formação do Braga, principalmente com os treinadores que apanhei, como o Carlos Batista, um homem de futebol, um homem de excelência que eu apanhei. Nesse ano, conseguimos ir à terceira fase dos nacionais, pelo Braga, e sou convocado para a fase final do Europeu, no qual nos sagrámos campeões, com o Vieirinha, o Paulo Machado, o João Moutinho, o Miguel Veloso, entre muitos outros. No final dessa época, dá-se a minha transferência para o FC Porto, onde eu continuei a minha formação, enquanto júnior e primeiro ano de sénior.

 

Essa foi uma fase complicada na carreira, a transição da formação para o futebol sénior… O que é que se passou?Sim, eu tinha contrato com o FC Porto, com opção. Foi a primeira vez que acabaram as equipas B em Portugal e, na altura, a transição não era tão fácil. Não acontecia como hoje, em que o jogador jovem é um potencial alvo de mercado, há mais oportunidades. Na altura, depois dos juniores e do primeiro ano de seniores na equipa B do FC Porto e de praticamente ter feito a época toda a jogar, houve ali aquele interregno em que, abruptamente, as equipas B acabaram, não havia transição. Nesse sentido, como o FC Porto poderia ter um projeto de ter uma equipa-satélite, mas depois não foi avante, fiquei sem contrato. Não acionaram a cláusula de renovação e depois aquele período de transição foi muito mais difícil, porque as equipas de II Liga e I Liga queriam jogadores mais experientes, mais batidos, era diferente do que é agora. Entretanto, com o problema de alguns empresários que nos prometem coisas que não são reais, não são adequadas aquilo de que precisamos, que queremos para as nossas vidas, prometem mundos e fundos, coisas se calhar surreais para aquela altura da vida, fui esperando, fui esperando, até que se dá o momento em que não surgiu. Acabei por ir à experiência, através de um empresário, ao Ascoli, da Serie A italiana, as pessoas gostaram de mim, mas viram que ainda não estava preparado para a Serie A e para aquilo que eles precisavam e então indicaram-me a um clube da Serie C, o AC Prato, para eu evoluir e desenvolver as minhas capacidades para depois no futuro, caso fosse possível, poder regressar.

 

 

"FIQUEI SEM CONTRATO NO FC PORTO, FUI À EXPERIÊNCIA PARA O ASCOLI ACABEI NO PRATO DA SERIE C. NÃO JOGAVA, VOLTEI A PORTUGAL, ESTIVE SEM JOGAR SEIS, SETE, OITO MESES. NÃO FOI FÁCIL, MAS FOI O PERÍODO MAIS IMPORTANTE DA MINHA CARREIRA"

 

E como foi esse processo? Veres-te de um FC Porto onde não tinhas espaço até à Serie C?
Esse processo foi moroso, passou o período de transferências, um processo chato para quem estava habituado a ter uma situação desportiva estabilizada, a realizar as épocas desde o início, depois das férias, alongou-se muito e entrei já muito tarde. Entretanto, comecei lá a época, a adaptação até foi fácil, mas desportivamente não estava realizado, porque vinha de uma realidade em que estava habituado às seleções e a jogar com regularidade, o que não estava a acontecer lá. Se calhar, por falta de maturidade minha, quis regressar a Portugal. O meu regresso dá-se ainda antes do término do campeonato, ali por fevereiro, março. Entretanto, chega o período de férias e é quando se dá ali um interregno que foi o período mais difícil da minha carreira, em que estive sem jogar seis, sete, oito meses. Foi entre o regressar de Itália e voltar ao ativo, cá em Portugal, o que aconteceu só em janeiro, porque não consegui entrar logo no mercado, devido ao ano que passei fora, as pessoas esqueceram-se um bocadinho do meu trajeto. Não tinha empresário na altura, também não foi fácil entrar em clubes. Foi o período mais importante da carreira, em termos pessoais e desportivos, até para eu perceber o que é que realmente queria.

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Neste período, como eu fui uma pessoa que foi sempre estudando e estava na universidade, aproveitei para fazer a minha licenciatura. Foi nessa altura, enquanto estava na universidade, que aproveitei para ir para o Infesta, que estava na II B, na altura, pelo facto de, mesmo estando a estudar, não querer estar parado, voltei ao ativo. Durante esse período, de janeiro até maio, em que voltei a jogar, que depois se deu a minha ida para o Santa Clara.

 

É esse o ponto de viragem? Basicamente, estiveste às portas de acabar a carreira antes de a iniciar… Foi aí que a relançaste?
Sim, foi a partir desse momento em que, depois desse ano no Infesta, na II B, fui para o Santa Clara e ingressei nos campeonatos profissionais. Foi no Santa Clara na II Liga, por duas épocas, depois o Trofense, na II Liga, uma época, depois dá-se a minha passagem para a Académica, na I Liga, onde faço a minha estreia no principal escalão, ao longo de três anos. Ganho a Taça de Portugal em 2011/12 e participo na Liga Europa na época 2012/13. E depois, dá-se a minha passagem pelo Boavista, num ano muito difícil, em que subiram pela via administrativa, mas em que conseguimos os objetivos que passavam por continuar na I Liga. Regresso, então, ao Santa Clara, à II Liga, vou para o Covilhã, na II Liga, também, e depois ingresso no Leiria, num projeto de subida à II Liga. Um clube histórico que ambicionava regressar à II Liga o quanto antes.

 

 

"FUI PARA O SANTA CLARA E INGRESSEI NOS CAMPEONATOS PROFISSIONAIS. NA ACADÉMICA, GANHEI A TAÇA DE PORTUGAL EM 2011/12 E PARTICIPEI NA LIGA EUROPA NA ÉPOCA 2012/13"

 

Como foi viver, uma fase tão precoce na carreira, uma situação tão adversa como aquela verificada na transição para o futebol sénior, entre o FC Porto e o Prato?
Foi uma altura muito difícil. Para quem estava habituado, desde os meus sete, oito anos, a jogar sempre, os minutos todos, os jogos todos, e depois de passagens por Braga, por FC Porto, com historial nas seleções jovens todas – praticamente, só não fui internacional A -, e de repente cair no esquecimento, sair do meu país e ir para uma terceira divisão, sentir que estagnou a minha carreira, foi complicado. E depois, antecipar as coisas, tomar a decisão de vir embora, antecipar o final do contrato, chegar aqui e não ter para onde ir, foi uma altura difícil, mas ao mesmo tempo acho que foi muito importante na minha carreira, porque deu-me bases para que eu tivesse força para não desistir, com uma base de apoio muito grande dos meus pais, dos meus familiares, dos meus amigos. Ensinou-me a não desistir, acima de tudo, ser uma pessoa persistente, com perseverança, com resiliência, e depois saber que, através do meu trabalho, nas divisões inferiores cá em Portugal, consegui retomar o meu caminho, com a ajuda das pessoas, do presidente na altura do Infesta, o senhor Ramos, uma pessoa cinco estrelas, e dos treinadores. O meu regresso aos campeonatos profissionais tem uma história muito engraçada: quando eu estava na universidade – aproveitei o facto de não estar a jogar para voltar mais a sério aos estudos, que nunca larguei por completo – entre setembro e dezembro, tinha aulas de futebol com o professor José Guilherme. que nesta altura está nos quadros da Federação, nos escalões mais jovens, e nós íamos falando, porque ele conhecia-me, da formação do FC Porto, não tinha sido meu treinador, mas jogava contra mim, quando eu estava no Braga, depois ele treinava os juvenis, eu estava nos juniores do FC Porto, e ele não percebia como é que estava naquela situação. Até que um dia me disse que sabia de um projeto de um treinador, que era o Vítor Pereira, que ia ingressar no Santa Clara. O facto de eu estar a jogar no Infesta e as coisas estarem a correr bem e as pessoas me conhecerem, indicou-me para o projeto, porque queriam jogadores jovens, com potencial, com formação e eu enquadrava-me nesse perfil e foi assim que ingressei no futebol profissional, sem a ajuda dos tais intermediários, que às vezes atrapalham mais do que ajudam. Isto apesar de considerar que, se forem pessoas corretas e sérias, acho que são importantes, mas neste caso foi através do meu trabalho e das pessoas com quem trabalhei diretamente no futebol e que tinham um conhecimento profundo da minha pessoa enquanto jogador e profissional.

 

"SEMPRE ME FUI APERCEBENDO QUE A CARREIRA DE JOGADOR ACABA CEDO E QUE TEMOS DE TER UM PLANO PARA DAR CONTINUIDADE À NOSSA VIDA. A MINHA VERTENTE ACADÉMICA SEMPRE FOI MUITO VIRADA PARA O TREINO, PARA O JOGO. ACREDITO QUE NO FUTURO VOU CONTINUAR LIGADO AO FUTEBOL"

 

 

Como é que se enquadra aqui a vertente dos estudos, em termos futuros?
Eu desde muito cedo tive sempre uma grande paixão pelo futebol, não só enquanto jogador, mas também por uma questão de perceber o jogo e entender como é que idealiza o treino. E a minha vertente desportiva e académica sempre foi muito virada para o treino, para o jogo. Acredito que no futuro, não tenho dúvidas em relação a isso, vou continuar ligado ao futebol, à área do treino. Aproveitei estes anos todos e o tempo que ia tendo entre treinos, descanso e jogos para me formar. Foi sempre esse o meu objetivo e o que os meus pais sempre me incutiram desde sempre, para nunca largar os estudos, e eu sempre me fui apercebendo que a carreira de jogador termina cedo que temos de ter sempre um plano para dar continuidade à nossa vida. Sempre foi esse o meu intuito, felizmente consegui, tirei uma licenciatura em Ciências do Desporto – Ramo Treino Desportivo no Porto, concluí o ano passado o Mestrado em Treino Desportivo também na UBI [Universidade da Beira Interior], na Covilhã, tenho o segundo nível de treinador, e agora quero continuar a tirar formações, para me instruir cada vez mais, para quando terminar a carreira – Deus queira que não seja tão cedo, mas algum dia terá de ser – ter continuidade no futebol.