"Apresentei-me todos os dias no estádio a ver os outros a entrar: foi humilhante!"


Nuno Laranjeiro fez a transição de jogador para diretor desportivo no Fátima, sempre sem receber. 

No final da época passada, aos 36 anos, e mesmo sentindo que tinha capacidades para continuar a jogar, Nuno Laranjeiro foi desafiado a integrar a estrutura do Fátima como diretor desportivo. Aceitou. A mudança na SAD traiu o projeto que abraçou e esvaziou-o de funções. Sem receber desde os tempos de jogador, rescindiu por justa causa, apontando agora o dedo a uma situação que alastra pelo Campeonato de Portugal: o investimento infundado, a falta de regulamentação e o incumprimento salarial. Diz que ainda podia jogar, mas procura agora um projeto sério e claro para explanar as competências que acredita ter e que defende terem sido desaproveitadas neste primeiro ano após dar por terminada a carreira de jogador. Confiança e ambição não lhe faltam.

 

Laranjeiro, estamos aqui, em Fátima, estás com 37 anos, eras o diretor desportivo no arranque da época, mas, entretanto, já não tens qualquer ligação ao clube, é isso?
Sim, a minha ligação com o Centro Desportivo de Fátima, SAD terminou em fevereiro, por justa causa, por falta de pagamentos salariais.

Foi uma situação que se prolongou por muito tempo, o que é que se passou?
Para dizer a verdade, este foi o meu pior ano no futebol. Começou logo mal: deram-me o cargo de diretor desportivo quando eu tinha mais do que capacidade ainda para ser jogador. A responsabilidade de terminar a carreira é minha, aceito-a, sem problema. Mas decidi fazê-lo porque queria abraçar o projeto de diretor desportivo, em que eu me revejo e na qual a administração da altura via em mim competências para desempenhar o cargo. Juntámos o útil ao agradável e definimos que, no final da época passada, terminada a minha carreira, assumia logo, de imediato, após o desfecho do campeonato, as minhas funções de diretor desportivo. E assim foi. Eu, todo entusiasmado com o projeto, porque é um clube com ótimas condições, com nome no mercado, porque já por aqui passaram grandes treinadores e jogadores de grande nomeada, pessoas simples, humildes, sérias, e depois veio tudo por água abaixo. Houve trocas de SAD, mas eu já estava no ativo, já tinha contrato assinado, inclusivamente me tinham pedido e dado autorização para que escolhesse a equipa técnica. Eu fi-lo: uma excelente equipa técnica. Mais à frente, olhando para os objetivos que nos eram propostos elaborámos uma lista de jogadores e começámos por sondá-los para que, quando nos dessem luz verde para abordar esses jogadores com coisas claras e sérias, avançar. Não o fizemos, porque não quisemos enganar ninguém: era fácil dizer a um jogador que tínhamos isto ou aquilo para oferecer, quando ainda não tínhamos autorização para o fazer. Mais tarde, com a troca da SAD, e como o mundo do futebol é pequeno, viemos a saber por portas e travessas que a nova administração já tinha contratado um novo treinador e um novo diretor desportivo. Ou seja, toda uma nova estrutura para o projeto deles, quando nós já tínhamos o nosso em curso, já com coisas assinadas, o que foi uma situação muito grave.

 

"ESTE FOI O MEU PIOR ANO NO FUTEBOL. COM A TROCA DA SAD, E COMO O MUNDO DO FUTEBOL É PEQUENO, VIEMOS A SABER POR PORTAS E TRAVESSAS QUE A NOVA ADMINISTRAÇÃO JÁ TINHA CONTRATADO UM NOVO TREINADOR E UM NOVO DIRETOR DESPORTIVO – UMA NOVA ESTRUTURA"

Quando é que essa situação se verificou?
Esta época, logo no início. Foi muito complicado. O Centro Desportivo de Fátima, SAD fez as coisas tudo muito à pressa, nunca poderia ter os resultados pretendidos, porque andou a contratar jogadores em cima do joelho, e quando é assim, ou paga muito, ou então, não tem jogadores. Um projeto para ter sucesso tem de ser sustentável. Eu e a equipa técnica para a qual dei o aval para a sua contratação tivemos momentos de angústia. Chegámos ao ponto de termos de nos apresentar todos os dias no estádio, a ver a outra equipa técnica com os jogadores a entrar e nós à porta. Foi humilhante. Isso não se faz. São coisas do futebol que não podem acontecer. Este ano foi mesmo para esquecer.

 

 

Como eu tinha contrato de diretor desportivo, eles chamaram-me, tiveram uma reunião comigo e a primeira abordagem foi no sentido de eu passar a ser o treinador dos juniores. Não aceitei, porque, como sou frontal, disse-lhes logo que as minhas capacidades e as minhas competências não eram para desempenhar essas funções. Ainda por cima, era num contexto distrital, logo não me seduzia. Disseram-me que voltaríamos a falar, porque queriam ficar comigo, era uma pessoa importante, era da casa, do futebol, tinham confiança no meu trabalho. A verdade é que não tinham, senão não contratavam outro diretor desportivo. Então, aproveitando o contrato que eu tinha, colocaram-me como diretor desportivo dos juniores… nos distritais. Não podia dizer que não, não estava discriminado em lado nenhum se era dos seniores ou dos juniores, tinha contrato com a SAD. Fiz o meu trabalho, com toda a estrutura e fizemos um belo campeonato – estávamos em primeiro, mas devido a tudo o que se passou, não houve termo, nem subidas, nem descidas. Entretanto, a equipa técnica que a SAD contratou foi embora, foi despedida e levou tudo. Chamaram-me e passei a acumular o cargo de diretor desportivo dos seniores e juniores. Era trabalho de manhã à noite. Sem receber um cêntimo. Sempre com promessas que iam pagar, iam pagar, iam pagar… e nada. Não tive voto na matéria na escolha do treinador, nem nada. Ou seja: era diretor desportivo, mas só para segurar o barco. Chamaram um treinador, o mister Akil, trabalhámos muito bem, inclusive não perdemos um jogo em oito jogos, ganhámos seis, empatámos dois, foi um período espetacular, em que ficámos em segundo, a poucos pontos do primeiro. Estávamos mesmo a superar as expectativas face às dificuldades com que nos deparávamos diariamente.

 

"ACUMULEI OS CARGOS DE DIRETOR DESPORTIVO DE JUNIORES E SENIORES. ERA TRABALHO DE MANHÃ À NOITE. SEM RECEBER UM CÊNTIMO. O CALDO ENTORNOU. DEIXOU DE SE TER CONFIANÇA. FORAM MUITOS MESES SEM RECEBER, COM A PROMESSA TODOS OS DIAS QUE IAM RESOLVER A MINHA SITUAÇÃO. ERA INSUSTENTÁVEL: TENHO UMA FILHA PEQUENINA"

O que se passou a seguir?
O caldo entornou. Deixou de se ter confiança. Foram muitos meses sem receber, com a promessa todos os dias que iam resolver a minha situação e a de todo o plantel, mas a minha era mais grave porque se arrastava da época passada. Chegou a um ponto em que era insustentável: tenho uma filha pequenina, e tenho família para sustentar. Como é lógico, gosto muito do clube, mas trabalhar em regime de voluntariado… não pode ser. Em fevereiro, acabei por rescindir o contrato por justa causa, por esses motivos.

Disseste que este foi o período mais difícil que viveste no futebol, mas ao longo da tua carreira como jogador, passaste por situações complicadas de incumprimento salarial em alguns dos clubes que representaste. Houve alguma situação que se parecesse minimamente com esta?
A única situação mais difícil foi no Freamunde, que ainda se arrasta. Saí de lá com cinco meses em atraso. Houve uma ação do PER (Processo Especial de Revitalização) e até um segundo. Foi no final da época e eles não tinham mesmo condições. É complicado. Mesmo este ano, pelo que ouço dizer, a administração da SAD também quer entrar com um novo PER e acho que a Federação tem de pôr a mão nisto. Está a ser demasiado fácil utilizar a palavra “projeto”. Como há pouco referi, um projeto tem de ser sustentável. Seja qual for o investimento envolvido tem de haver mais de metade, ou mesmo a totalidade dessa verba por garantias bancárias. Porque se não, não funciona, até porque hoje é tudo descartável: equipas técnicas, diretores, estruturas, tudo. Não presta, vai para a rua. Tem de pagar? Tem, mas é daqui a não sei quanto tempo, depois logo se vê. E andamos assim. O futebol não pode continuar nisto, tem de haver regras rígidas. Quem quiser entrar, tem de ter dinheiro para assegurar o projeto. Senão, mais vale começar de baixo e haver clubes da terra, como havia antigamente.

 

 

Veja-se o Fátima, por exemplo: a administração conseguiu tirar toda a gente que estava anteriormente ligada ao clube. Não há uma única pessoa ligada ao clube, com amor ao clube. Se querem puxar pessoas aos estádios, têm que ter pessoas ligadas ao futebol, mas que gostem da terra. O que se passou foram dívidas atrás de dívidas, o Fátima até pode continuar, mas há uma falta de identidade muito grande e as pessoas estão muito desiludidas com esta situação toda e vão deixar de acompanhar e apoiar a equipa.

Achas que há alguma complacência por parte dos órgãos que superintendem o futebol português no que a esses designados projetos diz respeito, é isso?
Acho, acho que sim. Tem de haver mão nisto. Porque isto de pegar num projeto até eu, mesmo sem dinheiro, chego aqui e digo: “Quero comprar a SAD”. E compro. Não meto dinheiro nenhum, não invisto, e é fácil, é iludir as pessoas. Depois, há contratos a cumprir. Só que lá está: eu tenho contrato; meti no advogado; tem que se pagar ao advogado; uma pessoa não recebe há dez ou onze meses, está há um ano a receber um mês; tem de pagar para receber algum; se for para o PER, vai-se arrastar anos. E andamos nisto: não pode ser!

A tua situação está por regularizar ainda desde a época passada?
Sim. 

Ainda eras jogador?
Ainda era jogador. 

Ou seja, fazes a transição de jogador para diretor desportivo com o Fátima em falta contigo, mas tu abraças um novo projeto…
Certo.

 

Como é que se faz essa transição e se dá esse voto de confiança ao Fátima?
É muito difícil. Uma pessoa acaba a carreira como jogador e tem uma oportunidade como diretor desportivo, para as quais me sinto capacitado, não só pela formação que estou a tirar, mas sobretudo pela experiência acumulada ao longo de anos. São precisas pessoas que conheçam o balneário, o que pensam os jogadores e os clubes estão a esquecer-se disso. Muitos clubes, com bons projetos, têm obrigatoriamente ex-jogadores de nomeada que percebem o que é preciso fazer. Esses são os que dão os melhores exemplos. Quem passou por elas, sabe como se lida com as situações.

Que tipo de formação estás a tirar?
Estou a tirar vários cursos, alguns dos quais até é o Sindicato que proporciona. São uma mais-valia, como é lógico, estou sempre disposto a aprender e se puder tirar as formações que me vão alargar o meu leque de conhecimento, assim o farei, para depois estar mais preparado.

 

"O FUTEBOL É UM MEIO QUE ESTÁ CADA VEZ MAIS PODRE. HOJE É MEIO MUNDO A QUERER O LUGAR DO OUTRO E FAZEM TUDO PARA O CONSEGUIR. VOU CONTINUAR A SER EU MESMO, FRONTAL, SINCERO, NUNCA VOU PASSAR POR CIMA DE NINGUÉM PARA TER O SEU LUGAR"

 

Mas isso não invalida todo uma carreira e toda uma vida ligada ao futebol, é isso que estás a dizer?
Exato, claro que não invalida e as pessoas esquecem-se muito disso. Eu sei que quando uma pessoa está na ribalta ou em baixo, ou tem amigos ou não tem amigos, ou tem pessoas que ligam todos os dias ou tem pessoas que não ligam, eu sei disso, conheço-os bem. O futebol é mesmo assim, hoje cada vez mais. É um meio que está cada vez mais podre. Hoje é meio mundo a querer o lugar do outro e fazem tudo para o conseguir. Acho que tem de haver princípios, ética, algo que não é feito por muitas pessoas, o que me deixa muito desiludido. Vou continuar a ser eu mesmo, frontal, sincero, amigo do meu amigo, nunca vou passar por cima de ninguém para ter o lugar de alguém.

 

E agora, o que perspetivas no futuro?
Um pouco imbuído do espírito deste espaço, nunca vou desistir. Tenho conhecimento, tenho pessoas ainda amigas no mundo do futebol. É verdade que neste momento estou desempregado, mas tenho recebido telefonemas de amigos meus a pedir ajuda em relação a jogadores e a recolha de informações sobre os mesmos, eu estou aqui para ajudar, mas não é isso que eu quero, agenciamento ou representação de jogadores. A minha ambição é enorme, mas estou a aguardar um bom projeto, em que me sinta confortável, as pessoas têm que estar no lugar para o qual têm competências para renderem o máximo. Por exemplo, muitas pessoas aceitavam o que me foi proposto, ser treinador dos juniores. Eu fui frontal, fui claro com eles: neste momento, as minhas competências levam-me até outras funções, não quero, não aceitei. Sei o que quero. Ainda hoje tenho capacidade para jogar, não ao nível de I ou II Liga, mas posso jogar no Campeonato de Portugal, e não o faço, porque assumi o passo dado no ano passado. Não correu bem este ano, mas espero por dias risonhos, futuramente, porque a vida não para e… desistir? Nunca!