"Julguei que já não voltava a jogar... e ainda ganhei duas Supertaças"


A família, os estudos, os projetos, a carreira e o objetivo de completar 20 anos como profissional.

 
O discurso transborda confiança, as prioridades estão traçadas, os projetos são enunciados com uma energia contagiante. Marco Soares, aos 36 anos, pretende prolongar o percurso nos relvados como profissional por mais dois anos, até às duas décadas, recusou novas aventuras no estrangeiro em prol da família, retomou os estudos pelo mesmo motivo, tem em marcha um projeto próprio de vestuário e calçado. Há dez anos, frente ao Sporting, fraturou a tíbia e esteve afastado dos relvados ao longo de 14 meses, nos quais se sujeitou a três intervenções cirúrgicas e olhou de frente o "fantasma" de um final precoce da carreira - acabou por não se verificar, mas não evitou que passasse o "comboio" da iminente saída para Inglaterra, até à Premier League, via Sunderland. Eis um exemplo de resiliência, dinamismo e empreendedorismo: desistir é um conceito... sem sentido. Marco Soares.

Aos 36 anos, estás no Arouca, com mais dois anos de contrato. Como estás nesta fase da tua carreira e como perspetivas o futuro?
Para já, o clube dá-me as garantias e a estabilidade familiar que era o que eu mais queria, neste momento. Tenho mais dois anos de contrato e esse era o meu grande objetivo inicial, que era para fazer 20 anos de carreira profissional. Então agora vou trabalhar todos os dias, tentar nesses dois anos fazer o máximo de jogos possível, tentar ajudar o clube da melhor forma, e depois é levar dia a dia. É focar no presente, sem pensar, a nível de futebol, tanto no futuro. Não tenho, por agora, nenhuma grande expetativa. Gostava de ter mais uma subida com o Arouca, isso era espetacular!


Tinhas propostas para prosseguir a carreira no estrangeiro, já tiveste mesmo algumas experiências lá fora, mas optaste por ficar. Foi pela estabilidade familiar de que falavas? O que te levou a recusar outra aventura no estrangeiro?
Tanto no ano passado como mesmo este ano, recebi propostas para regressar ao estrangeiro, onde eu já estive e passei momentos fantásticos. Guardo, por exemplo, Chipre no coração, foi um país que me deu muito e me fez crescer bastante, mas neste momento estou a optar mesmo pela estabilidade familiar, porque a minha família abdicou de muita coisa por minha causa. Para me poder acompanhar, para me dar estabilidade, e eu penso que agora está na altura de eu retribuir. As minhas filhas estão na escola, têm 7 e 8 anos, tenho uma filha mais pequena, de 3 anos, que não é tão afetada pelos estudos, mas principalmente por elas optei pela estabilidade, por causa da escola. Mesmo pela minha mulher, que ia fazer um estágio num hotel no Porto, que seria muito bom para ela, para a carreira dela. Neste momento, também estamos a pensar abrir a loja para ela, estamos em obras neste momento, e então foi muito a pensar nisso, na estabilidade familiar, porque eles deram-me muito, agora é a minha vez de dar.
 
 

 

"A MINHA FAMÍLIA JÁ ABDICOU DE MUITA COISA POR MINHA CAUSA. AGORA, ESTÁ NA ALTURA DE EU RETRIBUIR"



Entretanto, voltaste aos estudos, inscreveste-te no programa Qualifica. Até que ponto é que esse é um passo importante no sentido de garantir essa estabilidade e construir o futuro?
Sem dúvida que é um passo importante. Eu estava no Chipre e ainda tinha mais dois anos de contrato com o AEL Limassol, sentia-me super bem no clube, na cidade, era o capitão de equipa, mas quando tive oportunidade de regressar a Portugal, foi mesmo a pensar nisso, porque seria muito difícil voltar pela porta pela qual consegui voltar, que foi para a I Liga, pelo Feirense, um excelente clube, e então eu acabei por agarrar a oportunidade. Foi já no sentido de preparar o meu futuro, para além do futebol. Agora, acabei por me inscrever para acabar o 12.º ano, que era onde estava quando deixei a escola. Tentei conciliar com o futebol, com o estatuto de trabalhador-estudante que se tinha na altura, mas eu faltava a imensas aulas e depois chegava aos testes e realmente tinha muitas dificuldades. Acabei por desistir da escola e foquei-me só no futebol. Agora, tive a oportunidade e, através do Sindicato, eu vou acabar o 12.º ano, mesmo a pensar nisso, na preparação do meu futuro, até para poder tirar outros cursos também, relacionados com o desporto e não só. 
 
 

"AGORA, TIVE A OPORTUNIDADE E, ATRAVÉS DO SINDICATO, VOU ACABAR O 12.º ANO, PARA PREPARAR O FUTURO E PODER TIRAR OUTROS CURSOS"



Em paralelo estás a criar um projeto de material desportivo, roupa e calçado, o que nos podes dizer sobre essa outra vertente, do Marco Soares criativo/empresário?
Sim, estou a criar um projeto, a marca chama-se “Sonoskisabi”, que é uma expressão cabo-verdiana que quer dizer “Só nós sabemos” e que sempre utilizei muito, porque se refere muito a só eu e Deus. Tive uma carreira de muita resiliência, tive algumas lesões muito complicadas, muitos diziam que eu ia deixar de jogar e eu continuei sempre. Muito por causa disso, usei essa frase, essa expressão. Um dia estava a pensar: “Porque não criar uma marca ‘Marco Soares’?” Com o meu nome. A pensar muito em Cabo Verde, na altura. Mas depois fui buscar o “Sonoskisabi”, porque era uma expressão que eu usava muito. Acabei por conhecer um senhor em Santa Maria da Feira, São João da Madeira, que tinha uma fábrica de calçado e pensei em criar essa marca que de início era só de calçado. Mas, entretanto, começaram a surgir ideias e mais ideias… Eu gosto muito de moda, as minhas próprias peças de roupa são “invenções” minhas, acabo sempre por modificá-las. Acabou por surgir daí a ideia. Um dia, estava a dormir e acordei assim do nada às cinco da manhã. Começaram a vir ideias e mais ideias e comecei a escrever tudo num caderno. Neste momento, a marca já está registada, comecei a dar os primeiros passos para a criação das peças, que espero que dentro em breve possam sair. O processo atrasou-se um bocado com isto do vírus, mas algumas peças não estão totalmente acabadas, mas já tiveram o meu aval para se poder avançar e chegar ao produto final e eu espero que as pessoas também gostem das peças que eu vou lançar.


Mas é mais ao nível do design, da criação, o cunho pessoal que tu dás?
Sim, sem dúvida, porque eu vou fazer ténis, também. Quando comecei, eram sapatos, clássicos. Esse senhor que eu encontrei está no ramo há mais de 30 anos e sempre fez sapatos, vai fazer ténis pela primeira vez. Então, sou eu, da minha cabeça, que lhe vai dizer como é que ele vai fazer os ténis. Para mim está a ser um desafio também porque eu não sou estilista, não sou fashion design, o que quer que seja, é tudo da minha cabeça, vou vendo também aquilo que gosto e tudo vai ao encontro daquilo que é o meu gosto. Depois, vou tentando adaptar ao que as pessoas gostam, fazer uma pesquisa do mercado para perceber quais são as tendências e tentar dessa forma chegar às pessoas da melhor maneira. 
 
 

 

"CONHECI UM SENHOR QUE TEM UMA FÁBRICA DE CALÇADO E SOU EU, EM 30 ANOS, QUE LHE VAI DIZER PELA PRIMEIRA VEZ COMO FAZER TÉNIS"


Em relação a essa ligação que tens a Cabo Verde: tens 48 internacionalizações, é algo que pretendes cultivar e aprofundar no futuro?
Sim, sem dúvida nenhuma. O meu futuro pode muito bem passar pela seleção, como dirigente, por exemplo. Vou também começar a preparar-me ao nível das competências como treinador, algo em que nunca tinha pensado até há bem pouco tempo. Nos últimos anos, vários colegas têm-me dito que tenho perfil para vir a ser um bom treinador. Eu não tenho esse "bichinho", mas a verdade é que se me perguntassem há dois anos, eu dizia: "Não, está fora de questão". Neste momento, estou a pensar começar a tirar o curso de treinador e, ao mesmo tempo, tirar um curso de dirigente desportivo e penso que vai sempre passar por aí, porque, parecendo que não, são já 14 anos ligado à seleção. Em Cabo Verde, as pessoas têm um carinho enorme por mim e eu sinto que posso acrescentar ao futebol cabo-verdiano, então é dessa forma que vou procurar preparar-me para, se e quando acontecer, conseguir corresponder às expetativas e poder ajudar. É também por essa razão que a marca está em cabo-verdiano, por causa dessa forte ligação a Cabo Verde e por causa do carinho e do feedback que eu sinto das pessoas e pretendo também fazer chegar essa marca e as suas peças a Cabo Verde.


Falaste há pouco de alguns momentos de adversidade pelos quais tiveste de passar ao longo da carreira, tens presentes alguns mais marcantes?
Sim, sem dúvida, quando eu parti a perna, no jogo contra o Sporting, já quase a acabar o jogo, aos 86'. Nessa altura, estava a ser uma das minhas melhores épocas e eu tinha praticamente tudo acertado para ir para Inglaterra, para a Premier League, para o Sunderland. Parti a perna, parei 14 meses, tive de fazer três operações, pensei que já não ia voltar a jogar futebol. Para mim, isso foi uma grande superação. Penso que a capacidade psicológica que eu fui encontrar, a fé que eu fui buscar é que me fez ultrapassar essa fase, porque não é fácil: partimos a perna, dizem-nos que passados quatro meses estamos a treinar, mas voltamos e estamos com dores, temos de ir para a sala de operações outra vez e repetir todo o processo; depois, tudo de novo, outra vez... Fazemos as contas e foram 14 meses no final, foi, se calhar, uma oportunidade, um sonho, que foi deixado para trás, porque a Inglaterra e a Premier League deve ser o sonho de quase todos os jogadores de futebol, mas tive foi que olhar em frente e seguir caminho. Depois da lesão, acabei por ir para o Chipre, venci uma Supertaça, e essa experiência no país foi fantástica e só tenho de agradecer essa oportunidade. Daí eu falar da resiliência, porque de uma forma ou de outra, consegui dar sempre a volta por cima. Mesmo depois, acabei por ter outra lesão grave em Angola - tinha sido vendido ao 1.º de Agosto, que é uma potência em África. Não posso esconder que, a nível financeiro, foi muito vantajoso para mim, foram condições muito boas, tenho de agradecer ao míster Daúto Faquirá ter confiado e acreditado em mim, mas infelizmente tive essa lesão no tendão rotuliano, voltei a Portugal, fiz a recuperação na Fisiogaspar e fui operado pelo Dr. Noronha, fiz uma recuperação fantástica e acabei por ir para o Chipre outra vez. Ganhei outra Supertaça. Depois das duas lesões graves que eu tive, ganhei duas Supertaças no Chipre! (risos) Daí eu falar da resiliência, porque consegui sempre dar a volta por cima. Neste momento estou com 36 anos e sinto-me bem fisicamente. Muitos médicos perguntam-me como é que faço, porque não sabem com a idade que tenho e as lesões que tive, como é que consigo ter esta capacidade física, mas acaba por ser tudo resultado do foco e do objetivo que tenho.
 
 

 "TIVE ALGUMAS LESÕES MUITO COMPLICADAS, MUITOS DIZIAM QUE IA DEIXAR DE JOGAR E EU CONTINUEI SEMPRE" 

 



Na fase da carreira em que te encontras, qual a importância dos estudos na preparação do futuro? O que podes dizer aos jogadores mais jovens em relação a isso?
Eu sou apaixonado por jovens. alguns colegas meus gozam até e riem-se, porque acham que é piada. Mas se não fosse futebolista, gostava de ser educador de infância. Este ano, estive no Porto, numa escola, a fazer uma entrevista para tirar o curso de educador de infância. Acabei por não avançar, porque não queria fazer tudo ao mesmo tempo. Houve também uma situação curiosa: no Natal, fui ver a peça da minha filha e vi lá as educadoras de infância todas com os miúdos a apresentarem as suas peças de teatro, também: eram só mulheres! Fiquei ali na plateia a imaginar ser o único homem no meio delas todas a fazer aquilo e devo dizer que não me senti muito confortável, apesar de ser uma paixão que tenho. Gosto muito de trabalhar com jovens, de entrar na mente deles. Mas, acima de tudo, primeiro estão os estudos e só depois o futebol. No futebol, não sabemos no que vai dar, no dia de amanhã. Nem todos vão ser Cristianos Ronaldos, nem Messis, nem todos vão conseguir ter uma carreira sustentável, há lesões pelo caminho, e temos que ter onde nos agarrar. E os estudos são o nosso maior trunfo, até na nossa formação como homens. Haverá, certamente, uma altura na nossa vida em que vamos ter que escolher entre o futebol e a escola, como eu tive que fazer. Eu optei pelo futebol, mas tendo esta oportunidade agora, vou agarrar-me aos estudos e concluí-los, porque é muito importante para mim, para o meu futuro, para poder encará-lo com outros horizontes, acho que isso me vai ajudar bastante. Então o que digo a todos os jovens é: nunca metam a escola em segundo plano, tenham sempre o foco e o objetivo do futebol, não deixem ninguém tirar-vos isso, mas nunca metam o futebol à frente dos estudos. E isto serve também para os pais, porque hoje em dia já há pais que desejam tanto que os filhos sejam jogadores de futebol que invertem as prioridades. Os estudos são a nossa maior base.