"Sei que a minha vida vai mudar, porque um filho requer tempo e dedicação"
Contabilista, modelo e futebolista, aos 31 anos Ana Cláudia prepara-se para ser mãe.
Quando deste os teus primeiros pontapés na bola?
Comecei a jogar desde mesmo pequenina, na aldeia. Sete, oito anos, por aí.
Como era nos anos 90, os rapazes deixavam-te jogar com eles na escola?
Por acaso, sim. Lembro-me que, mal chegava à escola, o meu foco era ir jogar um bocadinho de manhã, logo quando entrava, pelas oito, oito e meia. E sim, era misto. As meninas era menos, mas até davam nas vistas. [risos]
Nessa altura o futebol feminino ainda estava longe da evolução que teve até hoje. Passava-te pela cabeça vires a ser jogadora de futebol?
Não, de todo. Jogava por hobby, nunca tive esse pensamento. No entanto, sempre fui frequentando o desporto escolar, se me queriam encontrar era mesmo no pavilhão multiusos, era lá que passava os dias. Até que o Atlético Ouriense criou a equipa feminina. Para começar a jogar futebol já era um bocado tarde, tinha 16, 17 anos nessa altura, mas resolvi experimentar e as coisas foram-se desenvolvendo.
Se o Ouriense não tem aberto captações para futebol feminino, achas que tinhas perseguido esta paixão?
Nunca pensei muito sobre isso, mas provavelmente não. Só se fosse para uma equipa de futsal, há algumas aqui perto, agora futebol penso que não iria jogar. [risos]
O que é que levou na altura o clube a tomar essa iniciativa, sabes?
Já foi há uns 14 anos, mais ou menos. Surgiu como uma brincadeira, foram pessoas cá da terra que tiveram essa iniciativa, convidaram-nos para jogar e na altura vim eu e a minha irmã. Lembro-me que ao início eramos cerca de quarenta, mais velhas, mais novas, um ambiente muito agradável. Depois as coisas foram evoluindo, houve a inscrição da equipa, começámos a jogar no campeonato e a partir daí as coisas foram-se desenvolvendo.
Como é que a tua família encarou que as filhas fossem passar a chegar com nódoas negras, depois de treinar à noite?
[risos] Por acaso foi engraçado. Tivemos sempre o apoio dos pais, a nossa mãe, principalmente, sempre que havia jogos era a primeira adepta na bancada. O nosso pai, assim um bocadinho mais receoso, com medo de ver as meninas no chão, ou aleijarem-se, qualquer coisa assim. Acho que somos um motivo de orgulho para eles.
“Nunca coloquei a expectativa muito alta em relação a ir para clubes maiores, também porque tinha a minha vida toda aqui. Fiquei sempre mais com os pezinhos na terra.” [risos]
Como é que orientavas a tua vida, de que é que abdicavas?
Hoje pergunto-me isso, realmente que ritmo que tinha, um bocadinho alucinante. Tinha trabalho, das 9 às 6, depois os treinos e estudava à noite. Lembro-me que às vezes, quando acabava os treinos, ainda ia para Leiria, que era o sítio mais perto para poder conciliar com os estudos. Ia às aulas e voltava, perto da meia-noite. Se calhar faltava-me tempo para estar com a família, amigos, e aqueles hobbies, que quando tinha tempo para eles, já estava um bocadinho esgotada, tinha de pôr assim um travão.
Por essa altura, foste eleita Miss na escola e começaste também a trabalhar como modelo. As adversárias mandavam-te bocas por seres uma espécie de Barbie que jogava à bola?
Por acaso nunca houve muito disso, nem comentários tipos “tens a mania”, felizmente. E quando há, são todos bons, simpáticos de ouvir, “Ó Miss, passa a bola”... Senti sempre carinho da parte delas, não era um assunto que vinha assim muito à baila, nem nunca me senti incomodada por nada que tenham dito.
E por seres mulher e jogares futebol, já sentiste algum tipo de preconceito?
Não, pelo contrário. Penso que é uma mais-valia para uma mulher, poder dizer que joga futebol. Somos vistas de maneira diferente, não é toda a mulher que joga futebol, portanto sentimo-nos bem.
Tiveste várias colegas que saíram para outros clubes, principalmente após a entrada do Sporting no futebol feminino. Mesmo tendo sido campeã nacional e jogado na Champions, nunca imaginaste como podia ser a vida na cidade grande?
Imaginei, sim. Nunca coloquei a expectativa muito alta em relação a ir para clubes maiores, também porque tinha a minha vida toda aqui. Fiquei sempre mais com os pezinhos na terra. [risos]
O teu namorado, agora marido, também é futebolista. Com os dois a treinar depois do emprego e a jogar ao fim de semana, conseguiam ter tempo livre para a vossa relação?
Sim e até acho que era melhor. [risos] Porque os treinos coincidiam, tínhamos o sábado e no domingo ele ia jogar e eu também. Aproveitávamos o tempo disponível. Por acaso, há muita gente que questionava isso, mas felizmente sempre conseguimos conciliar. Agora, daqui para a frente, vamos ver. [risos]
“O facto de infelizmente ter havido esta pandemia fez-me ficar com menos pena do que se o campeonato tivesse continuado a decorrer e eu tivesse de parar de treinar.”
Em casa, fala-se muito de futebol?
Sim, a TV está sempre ligada nos canais de futebol. Tanto eu como ele gostamos muito, penso que vamos continuar a gostar sempre.
E agora estás grávida. Como é ser uma atleta que vai ser mãe? Tenta-se que a gravidez apanhe o verão para perder menos jogos ou as coisas simplesmente acontecem, como com outra mulher qualquer?
Por acaso, comigo, simplesmente aconteceu. Soube que estava grávida em fevereiro, já estava nos planos, mas para este ano não tinha sido planeado e felizmente correu tudo super bem. O facto de infelizmente ter havido esta pandemia fez-me ficar com menos pena do que se o campeonato tivesse continuado a decorrer e eu tivesse de parar de treinar. Soube no fim de fevereiro e duas semanas depois o Mundo parou, não me custou tanto.
Como é que foi contar no clube?
Foi muito engraçado. Era sexta-feira e nesse treino sentia-me assim um bocadinho estranha. Umas dores de barriga, mas continuei a treinar. Até me lembro que uma colega comentou, “às tantas, está aí qualquer coisa”. E eu, “não, não está nada”. Na semana seguinte, confirmou-se e tivemos reunião no balneário. Aproveitei aquele momento para dizer que não podia continuar a treinar e então foi uma festa. Ficaram todas felizes e eu também. Por contar, não por deixar de treinar, isso custa. Fica no meu coração, estávamos todos juntos. Até já tinha avisado a direção que ia contar, foi muito giro.
Como foi, para uma pessoa ativa como tu, estar fechada em casa, enquanto também vivias uma experiência nova no teu corpo?
Sinto-me uma felizarda, correu tudo bem. Estive em teletrabalho e por aí mantive sempre a mente ocupada. Tento fazer os meus treinos, obviamente não pode ser futebol. Perguntei ao médico, mas disse que não podia, é um desporto de muito impacto. Tentava sempre fazer um treino adaptado para mim, a seguir ao trabalho, para me manter ocupada. E felizmente aceitei sempre muito bem, se calhar por ter pessoas perto de mim como a minha irmã, por exemplo, que nos dizem “estás tão linda”, “estás a reagir tão bem”, animam-nos um bocadinho e as coisas são mais fáceis. Felizmente estou a ter uma gravidez santa, depois quando ele vier cá para fora é que me deve dar muito trabalho. Mas está a correr tudo bem, não tive aqueles típicos vómitos, enjoos, isso por si só já é ótimo.
“Por um lado, é a paixão que existe pelo futebol e por tudo o que o envolve, por outro sei que a minha vida vai mudar, vou estar ainda mais ocupada, porque um filho requer tempo e dedicação.”
Com pais futebolistas, já há uma camisola e bola à espera do bebé?
Provavelmente. [risos] E penso que ele já sente, porque passa os dias a dar pontapés, acho que está destinado.
Quanto tempo depois do parto é expectável que uma jogadora volte aos relvados, fazes ideia?
Sinceramente, não sei. Ainda deve demorar algum tempo. Uns quatro meses, talvez, não tenho noção.
Mas queres?
É uma questão ainda um bocadinho delicada. Isto vai mudar muita coisa. Por um lado, é a paixão que existe pelo futebol e por tudo o que o envolve, por outro sei que a minha vida vai mudar, vou estar ainda mais ocupada, porque um filho requer tempo e dedicação. Está assim na balança… Ainda não está completamente decidido, no entanto, penso que terminar a carreira com trinta anos, da forma como foi comigo, poderá ser bonito.
Em Ourém, és uma figura pública?
Ai, figura pública, não. Mas as pessoas conhecem-me. Também Ourém não é muito grande. Sou daqui, estive praticamente sempre cá…
E sabem que vem um herdeiro a caminho?
Agora devido a esta situação toda não tem havido tanto contacto e convívio, mas penso que sim.
Tem existido uma mudança também na forma como os adeptos encaram o futebol feminino?
De dia para dia sente-se isso, uma grande melhoria. Tem vindo a aumentar, as pessoas valorizam bastante, já não é uma coisa banal, só para homens. Penso que o futebol feminino se tem vindo a valorizar muito, pela positiva. Aqui em específico, de há 14 anos para cá é de 8 para 80, ou de 8 para 800.
Quando se disputou cá a Liga dos Campeões, as pessoas perceberam a importância do que estava a acontecer?
Apoiavam bastante, tínhamos sempre casa cheia. Em relação ao que estava a acontecer e o que é que abrangia, não sei se tinham bem noção. Mas sempre sentimos um grande carinho.