Jogadas de Mestre


O capitão do Rio Ave tem na Educação uma segunda paixão e as duas não podiam estar mais ligadas. 

Como foi já estar a ver de fora aquele desempate por grandes penalidades, depois de um jogo épico contra um nome gigante como o AC Milan? Custa mais que se ainda não tivesses sido substituído?
Os penalties, acredito que têm mais a ver com aptidão para marcar e eu não sou grande batedor, portanto acho que estava bem de fora. É claro que fica aquele nervosinho normal. Mas lá dentro, a responsabilidade é enorme.

O capitão consegue fazer-se ouvir desde o banco?
Não, é muito difícil passar informação do banco para dentro de campo. É terrível. Nós dentro do campo estamos muito concentrados naquilo que está a acontecer. Só às vezes, durante paragens, conseguimos perceber algumas indicações. É como receber informação dos adeptos, assobios ou palmas, é difícil compreender o que vem de fora.

O que é que essa braçadeira mudou em ti?
Foi uma aprendizagem que tive ao longo destes anos. Ser eu mesmo, os meus colegas sabem aquilo que sou e a forma como tento gerir as coisas, tento liderar o balneário, para mim é um dever para com o clube mas acima de tudo com os meus colegas, represento-os e tenho que os defender até às últimas consequências.

Essa aprendizagem foi feita com os exemplos que tiveste ao longo da carreira?
Sem dúvida. Tive um grande capitão antes de mim, o André Vilas Boas, aprendi imenso com ele. Foi meu capitão muitos anos, durante muito tempo sem jogar com regularidade, o que é extremamente difícil. Quem liderava muitas vezes dentro do campo era eu, mas o André era o nosso capitão na estrutura. Com as suas diferenças, foi uma continuidade.

[Na paragem para seleções de novembro] Estás a dois jogos de ultrapassar Rui Patrício como o jogador no ativo com mais jogos na Primeira Liga. Era um dos objetivos para voltares mais esta época?
Se fosse seis golos para passar o Cristiano Ronaldo, talvez fosse um objetivo. [risos] São números, valem o que valem. Penso que já me encontro dentro dos 100 jogadores da Primeira Liga com mais jogos. É bonito, para mim representa muito, olhando para o meu passado, de onde vim e aquilo que construí. E o que não consegui conquistar – perceber que estou a fazer uma carreira bonita na mesma. Mais importante é saber que não posso acabar uma época a fazer trinta jogos e terminar a carreira, é muito difícil tomar essa decisão. Há outros objetivos, como fazer o doutoramento, é um grande objetivo enquanto jogo como profissional.

"O jogador português, a jogar em Portugal, a partir do momento que atinge uma certa idade, é descartável."

Aos 37 anos és velho, no futebol português?
Já há muito. Aos 29 já me consideravam um velho no futebol português. O Rio Ave não é exemplo disso, mas há plantéis com médias de idade muito baixas e o futebol cada vez se tornou mais um negócio. O jogador português, a jogar em Portugal, a partir do momento que atinge uma certa idade, é descartável. A culpa também é muito do jogador português, que acaba por ir jogar para outros campeonatos, em prol de melhores contratos. Depois, quando regressam, não conseguem voltar a entrar na Primeira Liga, não têm espaço nos plantéis, foram ocupados por mais novos, com as Direções a pensarem nas potencialidades de venda.

No Rio Ave existe um perfil de treinador que valoriza a qualidade de jogo. Isso é determinante para quem aceita vestir esta camisola?
Há muito mérito dos diretores, lembro-me do Miguel Ribeiro, do André Vilas Boas, agora também do Marco Carvalho. A contratação de jogadores com qualidade faz com que os treinadores que venham para cá queiram pôr a equipa a jogar com essa qualidade. Se formos ver, na mudança de paradigma do Rio Ave, 2012/13, com a entrada do Nuno Espírito Santo, houve também uma mudança de qualidade de jogadores, para um tipo de jogo diferente. Também foi feito um trabalho profundo de conhecer a pessoa que trazemos para cá. Tem de perceber o que é isto, o que se está aqui a construir, porque se não conseguir compreender esse aspeto, provavelmente só cá vai jogar seis meses, um ano. E os treinadores, costumo dizer que o Rio Ave é um paraíso para eles. Claro que em termos de infraestruturas poderíamos melhorar ainda mais, mas em termos de plantel, de condições, são mais que suficientes para estarem tranquilos e porem a equipa a jogar bom futebol e com resultados.

Essa análise ao lado humano de quem se vai contratar, à pessoa, tanto a nível de jogadores como de treinadores, como é que se consegue esse nível de conhecimento?
É um trabalho que depois nos compete a nós, capitães de equipa, estrutura. É uma coisa que se vai conhecendo, estabelecer como funciona o compromisso individual dele, dentro da equipa, as relações, a empatia. Tudo isso é considerado para que depois, quando é preciso tomar decisões a outro nível, tenha o nosso aval de continuação ou não. Acredito que esse trabalho, muitas das vezes na sombra, tem tido resultados incríveis e esse é um desafio enorme.

"Quando terminar o doutoramento, acabou, não há mais. Este está a ser o mais difícil, é um trabalho mais autónomo."

Licenciaturas, mestrado, doutoramento… Já chega?
Vai chegar. Quando terminar o doutoramento, acabou, não há mais. [risos] Este está a ser o mais difícil, é um trabalho mais autónomo. Agora tenho dois filhos e quando se deu a pandemia, as coisas foram completamente diferentes. Duas crianças lá em casa, decidimos não as colocar na escola, e isso tudo exigiu mais de mim e da minha esposa. Aos poucos tenho voltado a trabalhar no doutoramento, mas estou firme e com uma convicção enorme que até ao final desta época vou acabar.

Os teus pais incentivaram-te a prosseguir a formação académica. Pensas que isso te condicionou positivamente, ou se tivesses daqueles pais que na altura só queriam que o filho fosse o próximo Futre, terias ido para a universidade à mesma?
Somos quatro filhos lá em casa, sou o mais novo, e os meus pais sempre tiveram aquela máxima que a melhor herança que nos podiam dar era um curso superior. Eles, agricultores e comerciantes que são, não queriam que tivéssemos a vida árdua que eles tiveram no campo. Portanto, essa era uma pressão positiva que sempre tivemos. Todas as minhas irmãs construíram carreira em termos académicos, eu não podia ficar para trás. Para mim aquilo era muito normal, era o meu dia-a-dia. Fui eu também que comecei a construir essa pressão, talvez por perceber que a vida que eles tinham não era a que eu queria. E se eu queria ter mais qualidade de vida, então tinha de dar ao chinelo. Estava muito obcecado, tanto que a certa altura o meu pai começou, “por que é que queres seguir na universidade, se ainda podes tentar no futebol?”, naquela altura da passagem do secundário para a faculdade. E dei comigo a pensar, se tinha colegas com mais talento que eu, e não estavam a conseguir chegar ao mundo do futebol profissional, por que é que eu haveria de conseguir? Peguei nas minhas coisinhas, agarrei e fui aos estudos. É claro que depois a vida deu muitas voltas, não consegui entrar na faculdade do Porto e acabei por ir para a da Covilhã, onde me tornei profissional de futebol. Portanto, posso agradecer ser profissional de futebol ao facto de ter tomado a decisão de ir para a faculdade. Tenho treze anos de Primeira Liga e nem uma internacionalização em qualquer escalão de formação. É muito difícil para um pai, para um miúdo, perceber quando está a fazer aquele percurso todo na formação, se algum dia vai sequer conseguir chegar a profissional de futebol. Olho para a minha carreira, bonita, com muitos jogos, e não usei a camisola da seleção uma vez sequer.

 

 

"Alguma coisa nos pode de um momento para o outro tirar tudo."

Encaixaste bem isso?
Sim. E há muitos que foram internacionais jovens e acabaram por não se tornar profissionais. Não sabemos o que vai acontecer, alguma coisa nos pode de um momento para o outro tirar tudo. E é por isso que acredito mesmo muito que ter uma formação, apostar numa qualificação… nem toda a gente precisa de ser doutor, obviamente. Mas enquadrem a sua vida com investimentos empresariais, enquanto apostam na formação. A educação é a base para tudo o que fazemos na vida e todas as decisões que tomamos.

Nesse momento em que te mudas para a Covilhã, consideravas mesmo que os estudos poderiam ser uma alternativa ao futebol profissional ou era só um plano para se tudo corresse extremamente mal?
Não, não. Não havia plano B. Era estudar. Quando queria ir para a faculdade do Porto, o meu plano A sempre foi jogar futebol. A partir do momento em que as coisas correm mal, em que dei por mim a não poder ir para a faculdade do Porto, o Amarante, que era o meu clube de formação, a pedir dinheiro pela minha transferência… tinha ido treinar ao Boavista e ia ficar. Dei por mim a pensar, “Isto não está a correr nada bem”. Então agarrei-me ao meu plano A, que era estudar, e nem sequer sabia se havia algum clube na Covilhã para continuar a jogar futebol. Faltava-me um ano de formação, ainda júnior, dei por mim no meio da noite, num carro de dois lugares com três colegas lá metidos, a ir perguntar ao treinador dos juniores do Sporting Clube da Covilhã, era o Virgílio Martins, “Mister, posso treinar aqui com vocês?”. E ele virou-se para mim e disse: “Tu com esse andar vais é já assinar.” Mais tarde é que descobri que eles não tinham jogadores suficientes. E é claro, a partir do momento em que faço um ano de júnior e me torno profissional, depois nos seniores com o João Cavaleiro, aí sim. Comecei claramente a ver que já ganhava dinheiro com o futebol, a equilibrar as coisas, mas sempre com o objetivo de terminar a minha licenciatura lá na Covilhã.

Achas que hoje essa mensagem de ter uma alternativa, caso algo inesperado corra mal, já chega mais aos jovens jogadores do que quando começaste?
Já. Não tenho dúvidas nenhumas. Recebo muito feedback, algumas coisas que estou a tentar fazer no meu projeto, “A Minha Causa”, nota-se claramente que há uma preocupação enorme sobre o pós-carreira deles. Estamos a falar de jogadores entre os 25 e 30 anos. Lembro-me que, em 2016, fui das primeiras pessoas a falar disto em Portugal, este problema já existe há muitos anos, mas tem quatro anos a ser falado abertamente, em público. Há uma consciencialização diferente, do que aqueles jogadores que estão na casa dos trinta, trinta e cinco. A preocupação é muito grande sobre como essa malta está a preparar as coisas.

"Agarrei-me ao meu plano A, que era estudar, e nem sequer sabia se havia algum clube na Covilhã para continuar a jogar."

A maioria dos jovens já assumiu a decisão de seguir uma carreira no futebol ainda antes de se estrear pela primeira equipa, certo?
Muito antes. Dos números que tenho, apenas 16% dos jogadores portugueses chegam à Primeira Liga. Se formos à Seleção nacional A, só 2% é que conseguem chegar lá. Os restantes ficam lá atrás. A escolaridade obrigatória já existe há muitos anos, para tirar a carta é preciso o 12.º ano, penso eu. Se não é, deveria ser. Até aí, o abandono escolar é impensável. Estamos a falar de jogadores que se tornam profissionais às vezes com 14, 15 anos, que já ganham 2, 3, 4 mil euros por mês, e é incrível colocar-lhes na cabeça, e aos pais, que os miúdos têm de estudar. Esse pilar família é muito importante para as decisões desses miúdos.

Não há essa noção que, mesmo se chegarem lá acima, tudo tem um fim, certo?
Essa é uma delas, não somos jogadores eternamente. E depois é quebrar o mito que o dinheiro vai resolver todos os problemas. Porque isto é uma questão de escala. Se ganho 5, posso comprar um BMW. Se ganho 100, vou comprar um Ferrari. Vou gastar o dinheiro na mesma e quanto mais gasto, mais são as minhas despesas, é esta a relação, seja para quem joga a distrital ou para quem joga a Champions League. O status financeiro está descrito como um fator determinante na qualidade da transição para o final de carreira. Mas não é um fator único, porque se formos analisar os desportistas do mundo que mais ganham, os dados indicam que dois em cada cinco ficam falidos nos cinco anos após terminarem a carreira. Será que o dinheiro é assim tão importante? Não é. Por isso é que trago à discussão esta questão da educação, que ajuda à tomada de decisões, por exemplo, relativamente ao dinheiro. Porque um dia a carreira de toda a gente vai acabar. Isso é certinho. E, se tudo correr bem, aos trinta e cinco anos, vamos ter mais trinta anos de vida pela frente. Terminamos a carreira quando normalmente começa a de um recém-formado em Portugal. Andamos em sentido contrário à população. E o que fazer nesses trinta anos? Há outra questão, a mental, muita gente reporta o facto do vazio que fica depois de terminar a carreira. Tenho conhecimento de muitos casos, não só jogadores, também treinadores, que acabam a carreira, ou estão períodos sem trabalhar e acabam por se divorciar. Em Portugal, um em cada três divorcia-se no primeiro ano depois de terminar a carreira. Acabam também por ter problemas de depressão, passam o dia inteiro de pijama, sem objetivos. É nesse aspeto que gostava de alertar principalmente os mais novos, vão muito a tempo dessas decisões.

"Os nossos ídolos têm uma responsabilidade enorme naquilo que mostram, com as redes sociais."

As equipas B e sub-23 não acabam por prolongar esse sonho e aumentar o afastamento escolar?
Há esse facto, o jogador sentir que está tão perto da equipa A, da Liga Revelação, que tem uma visibilidade incrível, e alimenta esse fator. Mas voltamos ao mesmo, motivações erradas dão para tomar decisões de forma errada. Passo o meu tempo com os meus filhos, mas quando não os tinha, ocupava o meu tempo a estudar. Gosto muito de cinema, em vez de ir ao cinema à tarde, estudava. No dia de folga, dava comigo às quatro da manhã a levantar-me e ir para a Covilhã, porque tinha aulas de doutoramento o dia todo. Chegava a casa à meia-noite, são decisões. E já estava aqui no Rio Ave, a jogar a Liga Europa. O problema é que tudo tem a ver com essas decisões, independentemente do sítio onde estamos. Posso estar perto da equipa A, mas não perder o foco de continuar o meu curso, ou a minha qualificação profissional, apostar na aprendizagem de uma língua, sabendo que um dia poderei ir para outro país e diminuir essa limitação. Voltamos às motivações. E aí os nossos ídolos têm uma responsabilidade enorme naquilo que mostram, com as redes sociais. A carreira de jogador não é só cor de rosa, mostrar carros, mulheres, casas.

Nunca sentiste negatividade, mesmo que inconsciente, por parte de colegas que não faziam nada tão produtivo no seu próprio tempo livre?
Não. Provavelmente até certa altura achava que eu é que estava mal. Dava por mim a ver que estava num sentido completamente diferente da maior parte dos meus colegas. A partir do momento que comecei a estudar mais isto, comecei a perceber claramente que havia um problema real, que muitos jogadores não estavam a ver bem qual era. Corro o risco, já o disse, de um dia ser manchete, “Tarantini na falência”, é o que é. Tudo o que fiz, todas as decisões que tomei, foram em prol de construir e desenvolver uma carreira que me ajude depois, na transição para o final, a ultrapassar esse momento e manter a qualidade de vida que tive enquanto jogador de futebol. Esse é o meu grande objetivo. Agora como vai ser, é muito difícil perspetivar isso.

É um dever moral dos clubes ajudar a planear o futuro do elevado número de jogadores que acabam inevitavelmente por não integrar a primeira equipa?
Como as coisas estão é difícil, porque na formação vemos jogadores um ano num clube e depois vão para outro. Já levantei este desafio à Federação Portuguesa de Futebol: da mesma forma que os treinadores são certificados, o jogador de futebol também devia ser. Ou seja, não só ter talento nos dois pés, mas também uma série de competências que nos permitissem ajudar a desenvolver a nossa carreira fora das quatro linhas. Na formação, todos os jogadores inscritos tinham de estar a estudar, por exemplo. E a partir desse momento, todos nós devíamos ter de fazer formação em várias áreas, como por exemplo a literacia financeira. Naquela velha frase muito conhecida, “o futebol ajuda as pessoas a crescer como homens”, é verdade. Mas queremos saber depois, quando acaba o futebol, onde andam esses homens. Devemos ver se realmente o futebol os ajudou a construir uma carreira no dia que acabem de jogar.

 

 

"Não vou esconder que a magia que sentia com 25 anos é completamente diferente da que sinto hoje, com 37."

Ao veres as coisas de uma forma um pouco mais calculista, não perdes um bocado da magia do momento? Consegues desfrutar na mesma de uma carreira com que tantos sonharam na juventude?
Sim, a magia tem a ver com quando nós pisamos as quatro linhas e tudo o resto se esquece. Não vou esconder que a magia que sentia com 25 anos é completamente diferente da que sinto hoje, com 37. A que eu tinha quando jogava nos iniciados, juvenis, era muito mais bonita. Porque aqui há resultados, há momentos difíceis, momentos bonitos, e depois esta questão, para o bem e para o mal: são 13 anos de clube, em que já atingimos um nível bom, muito alto, e há novos desafios a cumprir. Acaba também por ter a ver com perceber até onde consigo dar o melhor de mim em prol da organização em que estou inserido. Amo, é a melhor profissão do mundo, e aproveito cada momento, cada jogo, e lembro-me claramente de onde vim e o que construí. Referiste a questão de ser calculista, a minha magia também foi sempre muito à base disso. Não é só vir para o treino e esquecer o resto. Uma pessoa que está demasiado dentro da bolha do futebol consegue ver pouco para fora dela.

Além do talento para chegar a este nível, foi o trabalho que te manteve estes anos todos no topo?
É preciso algum talento, no meu caso foi sobretudo muito trabalho, sacrifício e determinação. Já vi muitos jogadores com talento e sem esse compromisso que não conseguiram. Foi muito difícil chegar aqui, mas também foi muito difícil manter-me. Os primeiros anos no Rio Ave para mim foram terríveis e só com esse trabalho, dedicação, leitura, consegui ir evoluindo e ser inteligente na forma como geria o que cada treinador queria, para me manter. A partir do momento que me tornei um jogador com mais estatuto, aí sim, a evolução já é diferente.

Quando é que decidiste regressar aos estudos, já depois da primeira licenciatura no currículo?
Acabei-a em 2006 e regressei em 2014, já na fase final do mestrado. A construção da tese começou em 2013. O Nuno Espirito Santo já era o treinador do Rio Ave e fazia-nos pensar muito o jogo, com uma base científica que também trazia para o treino. Questionava-nos muito e dei por mim a pensar nas relações de espaço/tempo e o médio que jogava ao meu lado, na altura o Filipe Augusto ou o Wakaso. Comecei a perceber que se jogasse com o Filipe, precisava de estar mais perto dele, já com o Wakaso não precisava de me encostar tanto, porque ele cobria um espaço maior defensivamente. E quando dei por mim estava a fazer a tese de mestrado. O meu foco estava na performance, treino e foi giro trazer isso para a discussão. Depois o Bruno Travassos e eu acabámos por fazer outro trabalho, também com o Nuno e foi a partir daí que nasceu o Rio Ave Rendimento.

"Os primeiros anos no Rio Ave para mim foram terríveis."

Nunca sentiste que o fator estudos que ficou associado a ti se tornou tão grande que poderia ofuscar o teu desempenho nos relvados?
Tenho a noção que muito daquilo por que as pessoas me conhecem tem a ver com esse facto. É claro que, como com o projeto, só fui um condutor da causa, mas não me importo que isso seja demasiado colado. Os números falam por si, não podia estar mais satisfeito com aquilo que fiz na minha carreira como jogador de futebol. Tudo o que fiz à parte, é da mesma forma que aqueles que estão a jogar PlayStation em casa. Não temos nenhum jogador de eSports na equipa, mas poderíamos ter um super jogador de PlayStation, a fazer uma carreira num jogo qualquer, e ser vinculado a uma questão como essa. Eu fui vinculado a uma questão que levantei e que não me importo nada de apadrinhar, porque faz parte da minha história. Não posso abandonar o facto de que estou no futebol porque um dia fui estudar para a Covilhã, se o fizesse era mentira.

Continuar a olhar-se para um futebolista que assume que gosta de ler como caso extraordinário. É aceitável ou começa a ser injusto para a nova geração?
Vai entrar numa normalidade, acredito nisso e espero bem que o seja. Provavelmente no passado não era bem visto. As pessoas tinham medo de assumir que o faziam, provavelmente não traziam o livro para o estágio. Não tinham acesso a tanta informação, isso também pode ter prejudicado muitas decisões que foram feitas no passado. Todo o contexto mudou, o jogador atual é diferente do de há uns anos e essa questão de ler ou não ler já é ultrapassável.

Esgotaste recentemente a primeira edição do teu livro “A Minha Causa”. Era dirigido a que público?
O primeiro objetivo que tinha era um público que já conseguisse perceber a mensagem, dos 16 anos para a frente, em que caberia qualquer pessoa que gostasse de ler. Provavelmente entrou num nicho de mercado, que na altura não era o meu objetivo, o do futebol. Acreditava que aquela mensagem pudesse ser transversal a muitas outras áreas, não foi bem conseguido nesse aspeto. Até ao final da época vou voltar a lançar outro livro, para um público bem mais novo, numa altura em que já pode haver uma interpretação diferente do que é a carreira de um jogador de futebol e das decisões que podem ser tomadas lá atrás. É ali para os mais pequeninos, entre os 10-14 anos, com alguma ilustração, que acaba por trazer também algumas das minhas histórias de vida, que são contadas em palestras. Traz para a discussão temas como o dinheiro, o compromisso, a liderança, que acho serem importantes para os mais novos perceberem sobre aquilo que correm atrás.

"O jogador atual é diferente do de há uns anos e essa questão de ler ou não ler já é ultrapassável."

Já deste mais de 100 palestras. É mais difícil jogar ou falar em público?
No meu entender, falar em público. Agora já é diferente, é algo que faço há quatro anos, mas jogo futebol há 28, portanto é um bocadinho diferente. [risos] É algo que gosto muito, atualmente tenho duas palestras, uma para estes temas de que estamos a falar, educação, conciliar o futebol com a formação… E depois tenho outra mais direcionada para o mundo empresarial que é esta passagem de soft skills, competências que fui adquirindo ao longo da minha carreira enquanto profissional, de que forma conseguir resultados. E aí trazer um bocadinho este exemplo do Rio Ave, dos resultados que conseguimos alcançar nos últimos anos e tentar explicar o porquê. Também foi muito engraçado transformar isso em palestra, porque era algo que não estava à espera e quando me foi lançado o desafio, comecei a perceber, “Uau, isto também existe aqui”. Na altura da pandemia também lancei um eBook, não tinha nada para fazer em muitos momentos, então pus-me a escrever e são cinquenta páginas, com algumas questões que relacionam esses dois mundos, futebol e empresas.

A falta de planeamento de carreira é um problema mais do futebol ou do desporto em geral?
Onde há dinheiro, modalidades em que há mais capacidade financeira. Ainda há pouco tempo li um título, “Já se faz vida a jogar futebol de praia”. Fiquei seriamente interessado em perceber quantos anos dura uma carreira a jogar futebol de praia e as perspetivas. Se no futebol profissional e o que envolve já fico preocupado...

E o curso de treinador, vais em que nível?
Terminei no ano passado o nível III e agora estou à espera de entrar para o IV, sendo jogador ainda não há essa possibilidade. É uma das limitações que temos, algo de que já falei, já identifiquei. É claro que não existem muitos jogadores no ativo que queiram fazer o IV, é esperar que consiga resolver o problema. Não posso apagar com uma borracha os anos que tenho como profissional de futebol. Compreendo perfeitamente que nunca fui treinador, mas não posso permitir que me digam, “tu vais ter de começar lá do fundo”. Isso não vou permitir, por tudo o que conquistei. Foi conquistado a pulso. Esse fator ajudou-me a fazer o nível III e acredito que me possa continuar a ajudar. Se um dia decidir ser treinador, gostaria de aproveitar todas as oportunidades que me deem e eu entenda que posso aceitar, não vai ser pelo facto de não ter uma qualificação para o fazer. Sempre fui defensor da qualificação e a única coisa que peço é que me permitam fazê-la.

"Esqueci-me que tinha de ser melhor jogador para ter um projeto melhor e que o dinheiro era consequência de algo."

Desgaste psicológico não sentes?
O que sinto é que já não como qualquer coisa, como comia quando tinha vinte anos. Já alguém tem de me dizer por que é que vou comer aquilo. Às vezes se calhar não é a melhor forma de o fazer, mas sou muito crítico em relação ao meu trabalho e o dos que me rodeiam. É um lado que acredito que tenho dado às pessoas que por cá têm passado, esse desafio de trabalhar comigo. “Aquele gajo não vai papar qualquer coisa”; “Este gajo não está a comer aquilo tudo”. Acredito que isso vai fazendo que as pessoas evoluam, sabendo que às vezes me estou a prejudicar a mim.

Nestes anos todos de Rio Ave só estiveste uma semana fora do clube, numa das vezes em que o teu contrato terminou. O que é que viste ou ouviste numa realidade tão diferente como a do Irão que te fez querer voltar a esta casa que tem sido a tua?
Essa é talvez a história mais impactante da minha carreira no Rio Ave. O meu sonho quando era miúdo era jogar na Primeira Liga, então quando cheguei ao Rio Ave pensei que já tinha atingido tudo, o tecto. Depois vi uma vida nova. Andei aqui um bocadinho parado quatro anos, até 2012, e aí achei que queria ganhar muito dinheiro, isso é que era, encher o baú ao máximo e não fazer mais nada o resto da vida. Achava que já tinha feito o suficiente para ter uma boa proposta e aceitei ir para o Irão. O problema é que quando cheguei lá, aquilo que deixei e o que encontrei talvez não fosse aquilo que esperava. Provavelmente esqueci-me que tinha de ser melhor jogador para ter um projeto melhor e que o dinheiro era consequência de algo, não o contrário. Naquele momento foi o objetivo. Para ter um melhor projeto desportivo e dinheiro como consequência, tinha de fazer mais e melhor, não tinha feito porra nenhuma. Decidi voltar e quando cheguei ao Rio Ave vinha com uma perspetiva completamente diferente. Se quero ir para o estrangeiro, para um bom projeto desportivo, o dinheiro vai aparecer naturalmente, vou ter de criar uma nova ambição, ser melhor jogador. Isso fez toda a diferença a partir desse momento, foi uma aprendizagem muito grande para mim.

 

 

"O Sindicato dos jogadores é uma peça fundamental."

Sentires-te bem é mais importante que o dinheiro ou nome dos clubes?
O dinheiro é importante, muito. Desde que cheguei do Irão, já renovei várias vezes e para melhores contratos. É claro que não foi como um Ederson ou Oblak, que passaram por aqui e neste momento ganham dez milhões ao ano. Não posso esconder que gostava de ter jogado num clube de outra dimensão, mas sem dúvida que se tivesse de escolher entre dinheiro e estar bem comigo mesmo, escolhia estar bem, obviamente. Sem felicidade, não vale de muito.

Qual é a tua opinião sobre o trabalho do Sindicato?
O Sindicato dos Jogadores é uma peça fundamental. Tive muita pena neste processo que passámos de pandemia, podia ter sido uma boa oportunidade... Estive nos grupos, e no início dava para perceber que era possível estarmos todos juntos. É claro que depois cada um trata da sua casa e foi difícil esse entendimento coletivo. Mas sem dúvida que os passos a ser dados são nessa perspetiva, unificar os jogadores, é importante que estejam os jogadores portugueses dos clubes maiores, para darem força. É claro que depois o trabalho nas diferentes áreas tem sido feito, em questões relacionadas com o trabalho, solidariedade, educação. E isso nota-se claramente, os projetos estão a ser realizados e são apresentados. Tudo o que seja para unificar acho que é bem feito e acredito que nesse aspeto o Joaquim [Evangelista] está a fazer um trabalho excelente.