“Não abdiquei de nada, é a mensagem que quero transmitir aos mais jovens”


Avançado do Futebol Clube de Vizela, de 30 anos, é recém-licenciado em Ciências do Desporto.

Dividiste a tua formação entre Coimbra e o Sporting. Como foram os teus estudos nessa fase?
A partir do momento em que comecei a vir para o Sporting, naqueles primeiros anos foi um bocadinho difícil, porque estava a fazer viagens entre Coimbra e Lisboa. Basicamente, a minha mãe e o meu pai apanhavam-me na escola, à terça e à quinta, por volta das 15h30 e vinha para Lisboa treinar. Foi difícil, a diretora de turma ali com os meus pais, a tentar que eu fizesse o 7.º ano. Depois acabei por ir para Lisboa, Miraflores, ali na passagem entre escolinha e infantil, e aí as coisas já ficaram mais calmas.   

Sentias que nas camadas jovens era dada importância à escola?
A partir do momento em que entrei na academia do Sporting, senti que era muito importante para eles. Nunca nos deixaram descurar os estudos. Aliás, era obrigatório, sempre que falhávamos alguma coisa, faltávamos à escola ou tínhamos negativas nos testes e no final do período, ficávamos sem treinar, sem jogar. Existia acompanhamento psicológico e explicações para fazermos os trabalhos de casa e sermos ajudados nos estudos. Nesse plano, tenho de agradecer muito ao Sporting Clube de Portugal e à formação que me foi dada, porque me ajudou muito naquela etapa da minha carreira, tanto profissional como académica.

Aos 25 anos decides voltar a estudar. Foi nessa altura que te apercebeste que, quando deixasses de jogar, teoricamente ainda tinhas metade da vida pela frente?
Os estudos sempre foram uma obrigação, uma exigência familiar. Desde cedo que os meus pais me disseram, “queres ser jogador de futebol, ok, mas tens de manter os estudos”. Depois, aos 18 anos, acabei por ter uma lesão grave no joelho e percebi que isto é uma carreira muito curta. De um momento para o outro as coisas podem-nos escapar e não gosto muito de não ter um plano B. Foi sempre uma prioridade na minha vida querer estudar, querer saber mais, porque acredito perfeitamente que um jogador mais inteligente, mais culto, com mais conhecimento, é melhor jogador, melhor pessoa. E isso é o meu objetivo, ser cada vez melhor no que faço, adquirir mais conhecimento.

“FELIZMENTE CONSEGUI CONCRETIZAR ESSE SONHO DE JOGAR NA ACADÉMICA E ESTAR NA FACULDADE, SEM DÚVIDA FOI DAS MELHORES EXPERIÊNCIAS DA MINHA VIDA.”

Tu e o Traquina decidiram ir para a universidade quando estavam a jogar na Covilhã. O que vos levou a escolher Coimbra?
Eu e o João Traquina já temos uma amizade bastante longa, já antes do Sporting da Covilhã. Eu sou natural de Coimbra e o João também tem uma ligação muito forte à cidade e já é como se fosse de lá. Tínhamos esse sonho, de jogar na Académica e nos formarmos na Universidade de Coimbra.

Mas quando concorrem à universidade já sabiam que iam para a Académica na época seguinte?
Ainda não. Sabíamos que queríamos tirar o curso em Coimbra, no meu caso, como os meus pais e as minhas irmãs fizeram, era fundamental para mim cumprir esse sonho.

Na Académica também há um incentivo da parte do clube, ou são os próprios jogadores que acabam por sentir esse chamamento ao se verem envolvidos naquele ambiente?
Penso que é cultural, uma tradição já do próprio clube e eu, sendo filho da terra, sempre senti isso pelos jogadores mais velhos, referências como o Pedro Roma, o Rocha… O Vítor Campos, uma referência a nível nacional, era meu vizinho e sempre dizia, “jogar na Académica, pá, mas tens que estudar”. E eu liguei muito a isso, foi muito importante ali numa fase em que tendemos a desviar um pouco, “ah, isto não é preciso”. Felizmente consegui concretizar esse sonho de jogar na Académica e estar na faculdade, sem dúvida foi das melhores experiências da minha vida. Houve ali momentos em que basicamente não ia a casa. Saía para treinar e depois ia diretamente para a faculdade, gosto de dizer aos mais jovens que em Coimbra dá para fazer isso, mesmo a nível profissional e isso é de realçar.

O que aprendeste em Ciências do Desporto vai ser útil já no resto da tua carreira como futebolista?
Completamente. A partir do momento em que adquirimos mais conhecimento na área do treino, estamos com mais ferramentas naquilo que é o nosso trabalho diário, tanto a nível de ginásio, como de carga de treino, entendemos mais esses métodos dos treinadores, tentamos perceber mais. Gosto de saber o que se está a fazer e porquê. Sem dúvida que essa parte foi fundamental para evoluir. Quem pensar que sabe tudo ou que não quer saber, não está a ir no caminho certo.

“NÃO ABDIQUEI DE NADA, É A MENSAGEM QUE QUERO TRANSMITIR AOS MAIS JOVENS. CLARO QUE HÁ MUITO TRABALHO E É EXIGENTE, MAS SE TEMOS UM OBJETIVO, QUAL É QUE NÃO É EXIGENTE? SEJA ESTUDAR OU SINGRAR NO FUTEBOL, TEMOS DE TRABALHAR PARA ISSO.”

No futebol atual ainda és reconhecido como o jogador que estudou. Pensas que no futuro isso pode vir a generalizar-se ou a tendência será sempre os que estudam serem a exceção?
Eu gostava que isto passasse para os mais jovens: é possível ser jogador profissional e estudar. Para isso acontecer, talvez tenhamos de regressar à base, e é na formação que temos de apostar. Exigir aos mais jovens que têm de estudar, têm que seguir as suas carreiras e para isso nos clubes de formação tem de haver uma identidade e cultura de estudo para depois se chegar ao futebol profissional e ser mais fácil.

Pelo que conheces há mais incentivos por parte dos clubes?
Tenho sentido, pelo menos do que sei, na Académica as coisas têm evoluído nesse sentido, têm um acompanhamento bastante bom para os jovens seguirem os estudos, aqui no Vizela também, as coisas estão encaminhadas nesse sentido. Acredito que, pós-Covid, as coisas vão cada vez melhorar mais neste aspeto. As academias dos grandes também estão a apostar nisso e é importante que todos os clubes percebam que é importante formar jovens a nível académico. Um jogador mais inteligente, mais culto, está mais preparado para depois tomar decisões em campo, pensar mais rápido e os treinadores hoje procuram muito mais um jogador culto taticamente, que saiba ler o jogo.

Como é que geriste as coisas quando te mudaste para o Vizela?
Logo quando assinei disse que estava a acabar o curso e sempre que tinha alguma coisa importante, um trabalho ou uma frequência, agora durante o Covid normalmente era online, o próprio treinador e a direção deram-me total liberdade para ficar em casa, tive essa ajuda da parte do clube.

Em termos mentais, é fácil focar no jogo de domingo sem pensar no exame de segunda?
Há prioridades e o foco é isso mesmo: o que é importante hoje? O jogo, então vamos trabalhar para isso. Depois a seguir vem o outro foco e eu acredito muito na capacidade de resiliência, de persistência e de estar focado.

Sentes que abdicaste de muita coisa pela licenciatura?
Não abdiquei de nada, é a mensagem que quero transmitir aos mais jovens. Claro que há muito trabalho e é exigente, mas se temos um objetivo, qual é que não é exigente? Seja estudar ou singrar no futebol, temos de trabalhar para isso. Acredito muito na capacidade de organização, de focar, de ter método, porque é muito aí que te vais diferenciar. Na capacidade de te organizares no dia-a-dia, saberes aquilo que queres, qual é o teu objetivo e as tuas prioridades. Se é acabar o teu curso, tens é de querer.

“A MENTALIDADE AINDA NÃO MUDOU MUITO, OS JOGADORES ACABAM AS CARREIRAS SEM SABER MUITO BEM AQUILO QUE VÃO FAZER E O SINDICATO TEM FEITO UM TRABALHO FUNDAMENTAL NAQUILO QUE É PASSAR A MENSAGEM E INCENTIVAR OS ATLETAS, ATÉ OS MAIS JOVENS.”

O prazer dentro do campo mantém-se constante ou tem níveis diferentes com o passar dos anos?
A paixão é enorme para mim. Sinto um prazer enorme em jogar futebol, trabalho muito para isso.

E pensa-se quando se vai parar ou vai-se gerindo conforme o corpo responde e as oportunidades surgem ou não?Ainda não penso muito nisso, sinceramente, acredito que tenha mais alguns anos. Adoro aquilo que faço. Enquanto me sentir bem… Claro que tenho de estar bem fisicamente para continuar, mas enquanto a paixão permitir e ajudar e fizer golos, que é aquilo que mais gosto de fazer, acredito que possa vir a fazer ainda mais alguns anos.

É algo de que os jogadores falam com naturalidade ou meio tabu?
Não falamos muito sobre o fim da carreira. É um processo natural, as coisas vão acontecendo com o passar dos anos e foi um pouco também nisso que pensámos quando estávamos no Covilhã: vamos jogar mais uns anos a alto nível, certamente, mas queremos preparar também o futuro, naquilo que queremos vir a fazer. Temos a certeza de que neste meio do futebol, com um curso somos mais habilitados e mais capazes. Depois temos de provar isso na prática, mas não acabamos a carreira sem nada, com um diploma acredito que as oportunidades vão surgir mais facilmente.

O futuro, será no futebol?
Acredito perfeitamente que vou continuar ligado ao futebol.

E ainda tens vontade de estudar mais?
Sim, não quero parar por aqui, quero continuar a estudar, ainda não sei bem o quê. Neste momento vou dar um pouco de descanso ao estudo, a seguir logo se vê. Vou seguir a área do treino ou gestão desportiva.

O que pensas da aposta do Sindicato na educação dos jogadores e nas carreiras duais?
Acho que o Sindicato tem feito uma grande aposta naquilo que é a formação dos jogadores e tem investido em passar a mensagem para os jogadores continuarem a estudar e tentarem pensar no futuro. A mentalidade ainda não mudou muito, os jogadores acabam as carreiras sem saber muito bem aquilo que vão fazer e o Sindicato tem feito um trabalho fundamental naquilo que é passar a mensagem e incentivar os atletas, até os mais jovens. Só consegues acabar uma carreira e ter alguma coisa se no início as coisas forem bem alertadas e pensadas. Acho que o Sindicato tem feito um trabalho fundamental e queria agradecer muito por isso. Estamos aqui para pensar também um pouco nos outros e no futuro de todos.