"Gosto de criar hierarquias e de sentir que a idade é um posto"


Técnico principal do Paços de Ferreira, de 40 anos, fala sobre a relação entre treinador e jogadores.

Como é que nasceu a paixão pelo treino?
Sempre fui muito interventivo, desde miúdo, quando era bairro contra bairro, só que aí era muito anárquico, resolvíamos as situações por nós. Quando comecei a jogar federado, desde os infantis, sempre tive interesse em perceber as coisas, as posições, as movimentações, o trabalho dos médios, dos laterais, dos centrais, dos alas, do ponta, que era a minha posição, ou seja, acho que sempre foi muito natural em mim querer perceber tudo. Depois o treino acaba por estar inerente porque precisamos de o fazer para sermos melhores amanhã. Uma coisa está ligada à outra: querer melhorar e querer perceber o jogo.
Também tive a felicidade de ter tido bons treinadores ao longo da minha curta carreira e um ponto-chave foram os três anos que passei no Seixal como treinador-adjunto porque ali bebi muita coisa da metodologia de treino.

Infelizmente teve uma carreira de jogador muito curta devido às lesões. Em que altura decidiu ser treinador?
Mal acabei comecei logo a treinar, só que não tínhamos jogos. Era como se fosse um ATL, para passar tempo, mas era futebol. Faltava era o bichinho da competição. Apanhei meninos, meninas, gordos, magros, tinha tudo. Ia para o treino e eram 10, eram 15, eram 20, nunca sabia.

Isso foi na altura do Sacavenense?
Foi, exatamente. Tinha de começar por algum lado, mas a paixão estava lá. Ia com uma paixão enorme para o treino e saía sempre com o sentimento de dever cumprido e de querer ajudar os miúdos a melhorar.

Tem 40 anos e cumpre a quinta época a treinar na I Liga. Esperava um arranque tão fulgurante como treinador?
Por acaso, há dias chamaram-me à atenção para que se tudo corresse normalmente e terminasse a época passava os 150 jogos na I Liga. Realmente, aos 40 anos ter este número de jogos, fora as taças, é muito bom. Se esperava? Não esperava que fosse tão rápido. Tive sorte, mas também tive de estar preparado quando surgiram as oportunidades. Se não as agarramos quando surgem, isso é de andar aí a bater com a cabeça na parede. Tem sido assim o meu percurso e sempre me senti bem com os desafios que me foram aparecendo. É a sorte de aparecerem e depois são N fatores. Mas uma coisa que nunca fiz e nunca farei, até porque nunca tive necessidade de o fazer, é atropelar quem quer que seja porque tenho princípios e valores. Andar a oferecer-me a clubes e a ligar para presidentes, isso nunca farei. O que tiver de acontecer vai acontecer. 

“POSSO SER INJUSTO, MAS INCOERENTE NÃO SOU. ESSA VERTICALIDADE E ESPINHA DORSAL FAZEM PARTE DE MIM, E FAÇO QUESTÃO DE TRANSPORTAR ISSO COM NATURALIDADE PARA O TRABALHO.”

O que o levou a aceitar o convite do Paços de Ferreira?
É um clube que conheci como jogador. Passei por cá, mal joguei, só joguei uns dez minutos porque me lesionei e estive o ano todo no estaleiro. Tinha gostado muito daquilo que vi, das pessoas e guardei uma boa recordação. E quando surgiu o convite não pensei duas vezes. Independentemente de estarmos em último com um ponto, ainda faltava muito campeonato. Acreditei que podia ser mais um para ajudar e, todos juntos, conseguimos fazer uma segunda volta muito boa.

Qual é a principal virtude que um treinador deve ter para conquistar o grupo de trabalho?
Frontalidade e coerência. Aos olhos de alguns jogadores vou ser sempre injusto. É normal porque um acha que é melhor que o outro, que merece jogar e que o treinador está a ser injusto. Tenho de viver com isso, porque tenho de tomar decisões. Mas ser incoerente ou não ser frontal e direto nas coisas, isso não me perdoaria. E não admito que o digam ou que o pensem. Posso ser injusto, mas incoerente não sou. Essa verticalidade e espinha dorsal fazem parte de mim, e faço questão de transportar isso com naturalidade para o trabalho. O Pepa treinador não é muito diferente do Pedro Filipe. Não preciso de colocar uma capa: o que tenho a falar falo e o que tenho a fazer faço. O que os jogadores têm de ouvir ouvem, se tiverem de levar uma dura levam e quando tenho de passar a mão no pelo passo. Não estou ali com truques.

A relação entre treinador e jogador tem mudado ao longo dos anos?
Tem. Acho que dantes, mesmo no balneário, os jogadores tinham mais respeito pelos mais velhos. Havia uma mística à volta dos mais velhos. Não é ser subserviente, mas havia respeito e isso via-se a sentar no autocarro, à mesa, no balneário.... Hoje isso está a perder-se e gosto de incutir isso nos grupos de trabalho. Por exemplo, gosto que sejam os miúdos a ir buscar o material. Sem estar a menosprezar os mais novos, mas gosto de criar hierarquias e de sentir que a idade é um posto. O respeito pelos mais velhos é muito importante.

O Pepa treinador gostava de contar com o Pepa jogador?
Gostava. Acho que ia dar dores de cabeça ao treinador Pepa, mas o treinador Pepa ia ajudar o jogador Pepa. [risos]

“TEMOS DE SABER ESTAR NA VIDA PORQUE TUDO SE SABE E NÃO PRECISAMOS DE ATROPELAR NINGUÉM PARA ATINGIRMOS ALGO. QUEM FAZ ISSO UMA VEZ FAZ PARA O RESTO DA VIDA. HÁ QUE SABER ESTAR.”

Tem alguma referência como treinador?
Foi muito marcante ter apanhado o Paulo Sérgio no Olhanense porque, além de ter sido o último, e a última imagem é a que fica, gostei muito da frontalidade dele e da organização. Mas se for a falar de todos os treinadores que tive.... Gostei do Jupp Heynckes pelo rigor ao pormenor que ele tinha, do Toni pela paixão e emoção, do Jesualdo Ferreira pelo pormenor e por ajudar os jogadores, mas destaco o Paulo Sérgio porque foi o último e marcou-me muito.

E hoje?
Admiro muito os que vêm de baixo, como eu, e que foram subindo nas divisões. Não tenho nada contra treinadores que começam logo numa grande equipa, mas acho piada à carreira do Leonardo Jardim, do Pedro Martins, do Jorge Jesus, do Rui Vitória, dessa malta que foi subindo gradualmente. Gosto muito desse tipo de percursos. Depois há as referências como o José Mourinho, que é uma coisa incrível, o Klopp, que já no tempo do Borussia Dortmund tinha uma personalidade e uma paixão que sempre gostei de ver, o Simeone, que acho incrível estar há tantos anos no clube e conseguir meter o Atlético sempre a jogar com aquela intensidade e alma, tem de haver ali um desgaste tremendo e ele consegue autorenovar-se para conseguir passar a mensagem.... Há vários casos que valem a pena estudar. Não é fazer um copy-paste, mas tentar perceber como trabalham, a imagem, a comunicação, tudo isso.

A classe dos treinadores é unida?
Não, de todo. Somos concorrentes, mas temos de saber estar na vida porque tudo se sabe e não precisamos de atropelar ninguém para atingirmos algo. Quem faz isso uma vez faz para o resto da vida. Há que saber estar.

Se pudesse escolher, em que liga gostaria de treinar?
Em Inglaterra. Quando era miúdo gostava do Liverpool, mas depois uma pessoa começa a crescer no mundo do futebol e liga mais às próprias equipas, ao que jogam, e não tanto aos clubes. Mudamos a forma de ver as coisas.

“FUI SINDICALIZADO COMO JOGADOR E ACOMPANHEI A EVOLUÇÃO. SEM ESTAR A TIRAR VALOR OU MÉRITO A QUEM ESTAVA ANTES, LONGE DISSO, MAS HÁ QUE DAR OS PARABÉNS A TUDO O QUE ESTÁ A SER FEITO.”

Que equipa mais o seduziu pelo estilo de jogo?
A seleção da Holanda que foi campeã da Europa em 1988, com Gullit, van Basten, Rijkaard, Koeman, o guarda-redes era o van Breukelen.... Foi a segunda Laranja Mecânica, depois da Holanda do Cruyff. A equipa foi o Barcelona, na altura do Bobby Robson, muito por culpa do Ronaldo Fenómeno. Mas aí era mais pelo jogador. Como equipa mesmo, foi também o Barcelona, do Romário, Stoichkov, Guardiola, Bakero....

O Dream Team do Cruyff.
Ora, aí está! Aquilo era qualquer coisa.

Até onde gostaria de chegar como treinador?
Ao topo. Considero que estou no topo, mas ainda dá para subir mais. Da mesma forma que quando comecei a carreira como treinador ambicionava chegar ao futebol profissional num certo espaço de tempo, também não escondo que ambiciono treinar uma equipa que me permita ouvir o hino da Liga dos Campeões e lutar por títulos. Tenho um sonho de criança que é ir ao Jamor. Já lá fui jogar, ou pela Seleção, ou contra a B SAD ou contra o Benfica, quando tinha o Estádio da Luz em obras e jogava no Estádio Nacional, mas nunca lá fui assistir a uma final da Taça e recuso-me a ir. Para ir lá tem de ser para disputar alguma coisa.

Alimenta o sonho de vir a ser selecionador nacional?
Sinceramente, não. Nunca me passou pela cabeça. Quando oiço o hino ponho-me logo de pé, isso não há hipótese! Se estiver em casa a ver um jogo da Seleção não consigo estar sentado, tenho de ouvir o hino de pé. Não sei se foi por ter jogado na Seleção, mas tenho esse respeito. A Seleção diz-me muito mas como português, não a pensar em um dia vir a ser selecionador. Nem me passa pela cabeça tal coisa. Tenho paixão pelo nosso país, mas isso é com o hóquei em patins, com os Jogos Olímpicos, com os Mundiais de Atletismo, com tudo.

Qual é a sua opinião sobre o trabalho do Sindicato dos Jogadores no futebol português?
Conheço o Dr. Evangelista há muitos anos, ainda ele não era presidente, e a verdade é que o Sindicato tem evoluído de uma forma fantástica e brilhante. Desde as infraestruturas, o tão famoso Estágio do Jogador, a capacidade financeira que foi conseguindo para ajudar quem mais precisa, os vários cursos, as ajudas em termos formativos, ou seja, acho que só não faz mais porque o próprio jogador não se envolve mais. Isso é que vai tornar o Sindicato ainda mais forte. Um dos mais fortes que conhecemos é o de Espanha e isso acontece pelo envolvimento dos jogadores. Mas tem feito um trabalho incrível nos últimos 15/20 anos. Fui sindicalizado como jogador e acompanhei a evolução. Sem estar a tirar valor ou mérito a quem estava antes, longe disso, mas há que dar os parabéns a tudo o que está a ser feito.