"Quero ser recordado como um profissional de excelência"


Com 40 anos, o capitão do Boavista, Rafael Bracali, é o jogador mais velho a atuar na Liga Portuguesa.

Começamos pelo início. Guarda-redes, filho de guarda-redes. Sempre fez parte dos teus sonhos de criança ser jogador e jogar na mesma posição que o teu pai?
Sempre fez parte dos meus sonhos ser jogador, não jogar na mesma posição que o meu pai. Eu acompanhei ainda um pouco da carreira dele como guarda-redes. Via tudo aquilo por que ele passava durante os jogos e quando chegava a casa, o sofrimento dele e da minha mãe com tudo aquilo que o futebol é: a pressão, os resultados, as derrotas e as falhas. Então, desde cedo preparei-me para não ser guarda-redes, assim como ele também não queria que eu o fosse.

Como surge, então, a baliza na tua vida?
Começo no futebol a jogar enquanto amador, a médio defensivo. Ele [o pai] próprio foi-me ver jogar e disse “não dá. Não tens capacidade física para isso. Agora, eu não te posso obrigar a não ir à baliza sem antes tentares”. Ele na altura já era treinador de guarda-redes e disse-me para eu ir treinar com ele durante algum tempo para depois jogar à experiência na equipa onde ele trabalhava, nos sub-17 e que aí me dizia logo se eu tinha capacidades ou não. Nessa altura eu já tinha 15 ou 16 anos. Aceitei, mas demorei um mês até começar a treinar. Ele treinava a equipa sénior e eu tinha algum receio de ir treinar com eles, por causa daquela coisa do “ah lá vem o filho do treinador” e eu não queria ficar com isso associado. Um dia a equipa foi treinar fora, no estádio ficaram só os guarda-redes e eu aproveitei e fui. Aí, foi quase paixão à primeira vista. A primeira vez que tive contacto com a bola, como guarda-redes, num treino específico, gostei e nesse momento, o meu pai, enquanto antigo guarda-redes e treinador muito capacitado disse “Olha, agora é contigo. Se quiseres mesmo é só seguir e treinar”. Foi aí. Foi o pontapé inicial.

A verdade é que fizeste uma boa escolha e destacaste-te no Paulista. Jogar na Europa era um objetivo de carreira?
No início não. Primeiro tinha muita vontade de jogar no Paulista, porque era uma equipa que formava muitos jogadores que depois seguiam para a equipa principal. Eu era da cidade e queria combater essa situação de me cruzar com o meu pai que era treinador da equipa principal. Desde muito cedo preparei-me para isso. Comecei a jogar na equipa de sub-17, passo para os sub-20 e só no meu último ano nesse escalão é que eu saltei para ser o terceiro guarda-redes da equipa principal. Mesmo os treinadores não conheciam o meu trabalho e o meu trajeto na formação, então também desconfiavam à primeira vista. Então, todos os dias tinha de provar que estava ali por mérito próprio e não por cunha ou algo do género. Preparei-me desde muito cedo para isso. Sabia que ia acontecer e trabalhei para que essa pressão fosse uma coisa natural, fosse da parte dos jornalistas, dos adeptos ou até mesmo dos meus colegas. Foi assim que surgiu o meu sonho, primeiro de vingar no Paulista. Aconteceu e só depois apareceu o sonho de jogar num grande do Brasil. Esse era o meu primeiro sonho, depois de vingar no Paulista.

Como é que foste lidando com essa pressão de ter de provar, constantemente, que estavas ali por mérito próprio?
Não é fácil… Até porque tinha 18 anos quando comecei a treinar com a equipa principal. Levei bastante na cabeça, entre o meu primeiro treino e o meu primeiro jogo oficial. No fundo, os adeptos já conheciam o meu trabalho na formação. Já tinha mais de 100 jogos, era capitão da equipa de sub-20, já tinha sido campeão nos sub-17, então, já tinha uma história na formação do clube. Depois, e nós sabemos como é, havia muitos adeptos que tinham o sonho de ser jogadores, amigos meus que tentaram ser jogadores e não conseguiram, então, no fundo há alguma frustração da parte deles. Depois, a partir do momento em que tu consegues e estás ali, és avaliado não como Rafael ser humano, mas como jogador. A pressão para o meu lado, claro, foi muito maior do que para qualquer outro jogador. Até o contacto entre mim e o meu pai, que era meu treinador, era muito frio, era mesmo uma relação profissional. Aliás, muitas vezes em casa a relação continuava a ser mais profissional que pessoal, precisamente por eu estar muito, muito concentrado naquilo que eu queria. Sabia que não podia desviar o meu foco, nem sequer numa brincadeira. Tipo “pai, chuta-me aí uma bola!” era uma coisa impensável, nunca aconteceu.

Estavas a dizer que vir para a Europa não era um objetivo de carreira na altura, mas o que é facto é que em 2006 aparece a proposta do Nacional. Quando e como decides aceitar esse desafio?
No ano anterior, o Paulista, uma equipa de Segunda Liga, foi campeã da Copa do Brasil onde apanhámos seis equipas da Primeira Liga. A Copa do Brasil é diferente da Taça de Portugal, todas as fases são a duas mãos e tens sempre de jogar em casa e fora. Como ganhámos, garantimos um lugar na Libertadores e aí foi o meu auge, com 23 ou 24 anos. Foi nesse momento que eu esperava receber uma proposta de um grande clube. Houve muitas mudanças nas balizas dos grandes – Santos, Corinthians, Cruzeiro, São Paulo – e eu criei uma expetativa. Claro que eu era valorizado no Paulista, gostava de ali estar, mas queria dar um passo em frente. Isso não aconteceu. Em 2006 há então o Mundial, tivemos uma pausa e nessa pausa, nas férias, entraram em contacto comigo. Aí sim, pedi a opinião do meu pai e ele disse “olhando bem, não pela parte financeira, mas pelo projeto de carreira, acho que é interessante saíres. Olha quantas portas se abriram e mesmo, no auge, campeão, não aconteceu. Se calhar é o momento de arriscares e ires para fora”. Fui conversando, pedindo opiniões. Era um contrato que dava estabilidade, um contrato de 5 anos, coisa que não se faz no Brasil, e aí, pronto, aceitei.

“AGORA, COM 40 ANOS, OLHO PARA TRÁS, FAÇO UMA ANÁLISE E TENHO A CERTEZA DE QUE SEMPRE FIZ AS MELHORES ESCOLHAS.”

Chegas a Portugal em 2006, com 26 anos. Já não eras um adolescente ou jovem adulto. A adaptação a um novo país, a um novo futebol, foi fácil?
Não. Normalmente quando nós mudamos assim, muitas vezes achamos que as pessoas se têm de adaptar a nós e àquilo que achamos ser o correto e não. No primeiro ano, não foi assim. Eu é que me tinha de adaptar àquela realidade, independentemente de gostar ou não. Encontrei dificuldades no treino específico de guarda-redes na altura. Depois o profissionalismo do clube era inferior em relação ao que tínhamos no Brasil, num sentido de organização, de rotina. Havia algumas dificuldades em termos de estrutura, mas eram coisas que passavam um bocadinho ao lado, que davam para lidar, mas na minha cabeça não. Como eu era muito profissional, achava que aquilo tinha de ser como era no Brasil e por isso tive mais dificuldade no primeiro ano nessa adaptação. O facto de não ter jogado no primeiro ano também me causou alguma confusão. Vinha de uma equipa campeã, era o capitão, com 24 ou 25 anos e o não jogar causou-me algum impacto. Depois fui de férias e quando voltei pensei que tinha de entrar de cabeça naquilo e deixava o passado e aquilo que era no Brasil. Pensei “não, não, eu vim para aqui para triunfar, não para arranjar desculpas”.

Começas a jogar com regularidade a partir da segunda, terceira época no Nacional e afirmas-te como um dos grandes guarda-redes da Liga. Como viveste a dita “ascensão” da carreira e do teu nome?
Sim, eu começo a jogar na segunda época, quando o Diego Benaglio saiu, em janeiro. Na mesma altura, tive uma proposta para regressar ao Brasil, para o Corinthians. A proposta apareceu um pouco antes da possível saída do Benaglio e eu pedi para regressar ao Brasil, porque era o Corinthians e eu não conseguia dizer que não, mas o presidente disse que ia vender o guarda-redes principal e que eu iria começar a jogar e pronto. Coloquei o Corinthians de lado e quis triunfar no Nacional. Foram épocas vitoriosas, era um clube que andava sempre pela Europa… Fiz cerca de 150 jogos pelo Nacional nessa altura, o recorde de jogos consecutivos pela mesma equipa é meu, com 104 jogos pelo Nacional. Foi o clube que me deu essa oportunidade, eu aproveitei-a e trabalhei muito por ela. Claro que depois queria dar outro passo. O meu contrato foi até ao fim e depois sim, dei um passo diferente na carreira. A estabilidade do contrato deu-me a possibilidade de conseguir marcar o meu nome naquela altura no futebol português pelo Nacional. Ainda hoje, muita gente ainda se refere a mim como “O Bracali do Nacional”. Quando ficas muito tempo num clube, acabas por ficar marcado.

E nunca pensas que se calhar na altura devias ter tomado outra decisão e aceite a proposta do Corinthians?
Até poderia ter acontecido, mas agora, com 40 anos, olho para trás, faço uma análise e tenho a certeza de que sempre fiz as melhores escolhas. É claro que não sabemos o que poderia ter acontecido, mas se eu olhar para a realidade que é o futebol brasileiro, se calhar hoje já não estava a jogar. O Brasil é muito instável. Se olhares para as balizas dos grandes clubes, a maioria dos jogadores que tem a minha idade ou até quatro, cinco anos mais novos que eu e da mesma posição, já se retiraram todos. E já pararam há cinco, seis anos atrás. Isto os que ficaram no Brasil. Os que saíram para a Europa ainda conseguiram continuar.

Com 33 anos, depois de uma época no Olhanense, sais para a Grécia. Sentes que foi o passo certo a dar?
Foi. Eu saio do Nacional e vou para um grande clube. Por exemplo, estava no Nacional a jogar a Liga Europa, saio para um clube que é campeão nacional e depois vou jogar para uma equipa que está a lutar para não descer de divisão. Mesmo com todas as dificuldades que teve nesse ano, não desceu. No ano seguinte, ainda tenho contrato com esse grande clube. O que aconteceu foi, apesar de ter mais um ano de contrato, eu sabia que não contavam comigo. Eu já treinava afastado no plantel, mas como tinha uma história em Portugal, um bom nome, tinha proposta de quatro ou cinco equipas da Primeira Liga. Entretanto, apareceu a proposta da Grécia. Pensei que era o momento de sair. Sem saber muito do que era o campeonato grego, arrisquei.

De Portugal para a Grécia, quais foram as maiores diferenças que encontraste?
O nível do campeonato grego não era como o do português. Era mais baixo em termos técnicos e táticos, mas era organizado. Em termos de arbitragem, não era um campeonato fácil. Aliás, foi essa a maior dificuldade que encontrei. A cidade em que vivíamos era tranquila, pacata, com 100 mil habitantes que vivia o futebol. Havia sempre uma atmosfera brutal no dia do jogo, sete, oito mil pessoas sempre no estádio. Os jogadores eram tipo superstars na cidade. Foi uma experiência interessante, com um povo feliz, que gosta de festa. Eu gostei profissionalmente e a minha família também gostou muito de viver lá nesse período.

“TENHO DE ESTAR SEMPRE PRONTO PARA JOGAR, QUANDO FOR NECESSÁRIO, MAS AO MESMO TEMPO TENHO OUTRAS FUNÇÕES. MANTER A DISCIPLINA E A ORGANIZAÇÃO DO BALNEÁRIO, POR EXEMPLO.”

Ficas no Panetolikos duas temporadas e regressas a Portugal. O que te levou a regressar?
Regressei ao Brasil para as férias, com a intenção de fazer um ano pelo Paulista e deixar de jogar. Foi assim que programei a carreira quando fui para a Grécia. Pensei “agora vou para lá, depois volto para o Brasil, jogo mais um ano no clube em que fui formado, no meu clube e depois paro”. Fiquei a treinar lá nas férias, até que apareceu a possibilidade de ir para o Arouca. Achei interessante, eram dois anos de contrato, a família gostava de Portugal e então disse “Vamos lá! Vamos para mais uma aventura”. Para quem queria parar….

Foi mais fácil aceitar a proposta do Arouca que a do Nacional?
Foi mais fácil. Pelo que eu já tinha vivido aqui, pelo conhecimento que eu tinha da Liga, pela facilidade que a minha família iria encontrar. Poderia ter continuado na Grécia, tinha opção de ficar lá mais um ano, mas a minha filha mais velha ia entrar na escola, no primeiro ano, e como eu já pensava em parar, pensei que não valia a pena ficar e sacrificar o primeiro ano de escola dela, daí voltar para o Brasil. Depois apareceu Portugal e para mim isso foi perfeito.

Os três anos no Arouca foram desafiantes e realizadores profissionalmente?
Foram, foram. Cheguei a um clube que tinha lutado desde as distritais para chegar à Primeira Liga, nos dois anos anteriores tinham lutado para não descer de divisão até à última jornada e no meu primeiro ano vamos à Liga Europa, com um 5.º lugar histórico. Para mim também foi bom, que com 34 ou 35 anos bati recordes e recordes na baliza. Para quem tinha visto o Bracali do Nacional, depois aquele num período menos bom no Olhanense, de repente volta e compara-me aos tempos do Nacional. Foi desafiante, era uma equipa com objetivos diferentes da Liga Europa, mas foi um ano em que deu tudo certo, tínhamos um bom grupo, bem liderado e no final conseguimos esse acesso tão importante que ficou marcado na história do clube.

Do Arouca, vais para o Boavista, onde ainda estás, mas também onde nem sempre tudo foi perfeito. Estiveste um ano sem jogar na Liga. Como viveste esse período?
Quando venho para o Boavista, já venho com 37 anos. Antes de mais não é fácil um clube contratar um jogador com essa idade. Para isso, tens de estar bem. No Arouca eu joguei sempre, tirando o período em que estive lesionado, fiz mais de 100 jogos. Chego aqui no primeiro ano e os guarda-redes era eu e o Helton [Leite]. Ele começou a jogar e eu entrei na segunda parte da época, quando ele se lesionou. Na época seguinte, faço doze ou treze jogos, no mesmo nível em que tinha terminado a época anterior e depois, por opção, deixo de jogar. Essa época já não jogo mais e, na época passada, o meu terceiro ano aqui, também não jogo. Mas o meu papel aqui é outro. Sou capitão de equipa e tenho funções como promover os guarda-redes, ajudá-los a crescer. Tenho um papel muito maior do que apenas jogar. Tenho de estar sempre pronto para jogar, quando for necessário, mas ao mesmo tempo tenho outras funções. Manter a disciplina e a organização do balneário, por exemplo. Estou muito feliz com esse papel e sempre que o Boavista precisar, o Bracali está pronto para entrar.

A posição de guarda-redes exige mais trabalho que as outras? No sentido em que não há tanta rotatividade de jogadores.
É uma posição muito mais responsável. Nunca sabes quando vais jogar, mas sabes que não é como um jogador de campo que vai entrar a qualquer momento. Como nunca sabes quando podes ser chamado, tens de estar preparado. Dos 20 jogadores que são chamados, o guarda-redes é o único que sabe que só vai entrar caso o outro se lesione ou seja expulso, que é uma coisa que ninguém deseja a um colega de profissão. É o teu trabalho. Se tiveres de jogar 10 minutos tens a mesma responsabilidade que se jogares o jogo todo.

“CONHECIMENTO NÃO OCUPA ESPAÇO. FOI MUITO IMPORTANTE PARA MIM NA ALTURA CONSEGUIR, COM 21 ANOS, CONCLUIR A FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA.”

Psicologicamente sempre lidaste bem com os desafios que foste tendo ao longo da carreira?
Sim. Óbvio que há dias em que ficas mais triste, mais chateado, mas isso depois passa. O mundo dá voltas. Se plantas o bem, colhes o bem. Mais tarde ou mais cedo a tua oportunidade vai aparecer e quando aparecer, as coisas boas vão acontecer. Claro que no começo da minha carreira, quando acontecia algo que não gostava tanto era mais impulsivo, reagia muito mais com emoção do que com razão. Ao longo dos anos, com a experiência e com a maturidade que vais adquirindo acabas por ser mais ponderado.

Hoje és o jogador mais velho a atuar na Primeira Liga. Já voltas a pensar no final da carreira?
Sim, desde os 35 anos que estou preparado [risos]. Seja no final desta época, da próxima, quando acontecer estou mais que preparado. Nós jogadores sabemos que temos um prazo de validade, não há como fugir a isso. Muito orgulhoso de ser o terceiro ano em que sou o jogador mais velho da Liga e também é uma vitória pessoal. Para estar na Primeira Liga, com 40 quase 41 anos, também tens de apresentar resultados. Ninguém te dá nada por caridade ou por ter sido bom profissional. O que interessa é corresponderes quando és chamado. O Boavista acredita sempre no Bracali e sempre que precisar ele está lá. Não sofro com isso. Vivo um dia de cada vez, porque eu já sabia, desde os 35 anos que esse dia ia chegar.

Sei que és licenciado em Educação Física. Em que momento é que pensaste que ingressares no ensino superior seria uma mais-valia?
Quando terminei o 12.º, no Brasil, só queria jogar futebol. Lembro-me que na altura fui de férias e disse ao meu pai “não, agora quero jogar” e ele “na, na, na…”. Ele também era licenciado, só que ele foi estudar no final da carreira. Dos 34 aos 38 fez Educação Física. Eu fiz no início. Ele disse-me “não, tu jogas no clube da tua cidade, és o terceiro guarda-redes da equipa principal, ao fim de semana não vais ser convocado. De segunda à sexta vais ter aulas”. Quando eu voltei das férias ele já me tinha inscrito para fazer o vestibular. Foi tudo ele que fez! Disse que ia estudar e fazer o vestibular e eu fui [risos]. Gostaria de ter estudado mais, ter aproveitado mais. A partir de uma certa altura comecei a jogar mais e acabei por não ter tempo para tudo. Consegui acabar, foram quatro anos, mas não foi fácil. Treinava durante o dia, tinha aulas das sete às onze da noite e eu sentia esse desgaste. Hoje olho para trás e sei que fiz a melhor escolha, por tudo! Até para compreender o jogo, ajuda em tudo. Conhecimento não ocupa espaço. Foi muito importante para mim na altura conseguir, com 21 anos, concluir a faculdade de educação física.

A escolha do curso foi já a pensar em ficar ligado ao desporto quando chegar a altura de guardar as luvas ou houve também influência do teu pai?
De certa forma sim, foi influência do meu pai. Eu nunca tive um sonho do tipo ser médico. Só ser jogador de futebol e foi do género, quero ser jogador, jogador, educação física e pronto. Se ele me dissesse “vais fazer o vestibular para medicina ou psicologia”, não ia dar. Ele quando pensou nisso disse “estamos quase todos relacionados com essa área, vai ter que ser por aí”. Claro que eu podia ter levantado a mão e ter dito que não, que eu decidia, mas também não tinha nenhuma outra paixão na altura que não o desporto. Naquela altura não conseguia ver 20 anos à frente, mas o meu pai sim. Estava no início da carreira e ele disse-me que poderia ter uma lesão, por exemplo, e teria de continuar a minha vida. Isso acabou por me acontecer no último ano da faculdade. Tive uma proposta para sair para um clube, emprestado por seis meses fora da cidade. Ia ser bom para mim, porque ainda não tinha muitos jogos pela equipa principal e lá ia jogar com realidade. Era o último semestre, o treinador da equipa ligou para o meu pai, pediu para falar com o Rafael e o meu pai disse “eu respondo por ele: não. O contrato dele acaba no final do ano, ele está a terminar a faculdade, vai terminar e depois sim, pode renovar o contrato ou sair para qualquer lado, mas para já termina a faculdade”. Ele depois contou-me. Se ele me tivesse perguntado, claro que eu ia querer jogar e pensava que depois logo terminava a faculdade. E se calhar nunca tinha terminado.

Agora estás também a tirar um curso da Liga, através do Sindicato. Está a ser uma experiência positiva?
Muito. O Sindicato tem-nos dado muitas oportunidades de pensar no final da nossa carreira ainda antes de ela acabar. Cada vez mais há uma preocupação para que os jogadores consigam antecipar esse cenário de fim de carreira, de forma a prepararem-se melhor e, quando acontecer, já terem qualificações suficientes para continuar numa outra função. Esse curso tem muito a ver com aquilo que é o futebol e a sua organização, mas do lado de fora. É um bocado como funcionam as organizações, mas de um ponto de vista que nós jogadores muitas vezes não conhecemos. Está a ser muito enriquecedor e estamos a adquirir conhecimentos diferentes daqueles que temos no dia a dia.

“O FUTEBOL É MUITO MAIS QUE APARECER PARA TREINAR. É CHEGAR A HORAS, ALIMENTARES-TE BEM, DESCANSAR BEM.”

O curso é uma pós-graduação em gestão do futebol. É algo que te vias a fazer um dia?
Também. Pode ser [risos]. É uma área que me interessa muito, a organização, a disciplina, fazer crescer e evoluir dentro e fora de campo. Passado dois ou três meses dessa formação, começou aqui a mexer esse bichinho e cada vez mais me interesso por essa área.

Com altos e baixos, a verdade é que 40 anos ainda aqui estás, na Primeira Liga, mas isso não acontece todos os dias, nem com todos os jogadores. Consideras importante que os jovens tenham sempre um plano B paralelo ao futebol, nem que seja para assegurar o futuro?
Não tenho dúvidas disso. Cada vez mais isso é importante. Quando somos jovens não conseguimos ter esse olhar. Nunca pensamos que nos vamos lesionar, por exemplo, que podemos perder uma oportunidade e a carreira ser mais curta ou mesmo ficarmos sem contrato e não atingirmos o patamar que imaginávamos. Quando isso acontece vemo-nos de repente com um final de carreira precoce e sem um caminho para seguir. “E agora, faço o quê da minha vida?”. Por isso é muito importante que quem rodeia os jovens, desde os pais, aos empresários e até mesmo os clubes, consigam de alguma forma consciencializá-los de que dá para se fazer sem muito desgaste. Hoje existem muitas formações online que dão para adquirir novos conhecimentos, aprender uma segunda língua, seja o que for. É sempre conhecimento que vais adquirindo. Seja no desporto ou noutra área qualquer, cada vez são mais exigentes com a tua formação e conhecimento para conseguires entrar na área, por isso temos de estar preparados para tudo. Pronto, o Bracali já tem 40 anos, mas se olhares à volta, nem todos jogam até tão tarde. Uns param aos 35, outros aos 33, outros ainda antes dos 30 por problemas que já citei anteriormente. Depois, apenas uma minoria no futebol ganha dinheiro suficiente para poder ficar um período sem trabalhar e só a usufruir dessa vida. Mesmo para conseguires gerir a parte financeira é importante a formação, para que quando terminares a carreira poderes ter uma almofada para poder ter um tempo para te preparares e estudar.

Quando decidires, de vez, pendurar as luvas, regressar ao Brasil é algo que está na tua mente?
Não. Eu já estou em Portugal há 15 anos, com dois anos na Grécia pelo meio. Aos 35 pensava em regressar ao Brasil e ficar por lá. Na altura o Brasil também estava numa situação completamente diferente daquela em que está agora. A verdade é que as minhas filhas foram criadas aqui. A mais velha nasceu no Brasil, mas só porque foi durante as férias. Ela tem 12 anos e não conhece outra realidade que não estar aqui, tirando aquele tempinho da Grécia. A mais nova nasceu aqui, a minha esposa está bem aqui, tem o espaço dela e trabalha cá. Nós gostamos muito de Portugal, sentimo-nos muito bem aqui. Quando o Bracali pendurar as luvas, com certeza, vai viver em Portugal.

O que te, e vos, prendeu a Portugal durante tantos anos?
A primeira parte foi a estabilidade profissional, o que no Brasil é muito difícil. Depois, comparado com o nosso país de origem, tem muito a ver com a segurança, com a educação. Neste momento tu consegues parar na rua, numa caixa multibanco para levantar dinheiro, seja a que hora for. Podes parar o carro na rua e ir descansado. Isso para quem é pai e mãe, dá-te algum conforto e é uma coisa, que infelizmente, agora não temos no Brasil. Depois a qualidade da educação, a qualidade de vida. Isso faz com que olhes e, por mais que os meus pais, a minha irmã, a família da minha esposa, estejam do lado de lá, tentamos suprimir essa ausência com a ida lá nas férias. É difícil falar sobre isto, porque é o meu país, mas imagina eu ter de ensinar as minhas filhas a tirarem o cinto rápido quando estão no carro no caso de acontecer alguma coisa, aparecer alguém para te roubar o carro ou um assalto. Claro que não chegas lá e isto acontece, mas pode acontecer e não é esse tipo de vida que nós queremos levar. Eu não abdiquei tanto tempo de estar perto da família pela parte financeira, mas sim pela estabilidade profissional e pessoal. Aqui encontrei isso e é por isso que nos sentimos bem e queremos continuar aqui.

Como queres ser recordado, enquanto jogador?
Eu não quero ser recordado como um grande guarda-redes. Quero ser recordado como um profissional de excelência. Quando alguém perguntar por mim, seja no Boavista ou em qualquer um dos clubes onde já joguei, no Brasil ou aos adeptos, gostava que respondessem “Grande profissional. Foi e é um grande exemplo com as suas atitudes. Era quem se preocupava e colocava o clube sempre à frente de qualquer individualismo”. É dessa forma. Como um profissional de excelência.

Para terminar, que conselho deixas a outros jogadores, que estejam a passar uma má fase ou até no início da carreira?
As dificuldades, por mais que tentemos arranjar culpados – o treinador, o presidente, os adeptos que não gostam de mim – no fundo somos nós que estamos lá. Não vão ser as pessoas que vão mudar esse cenário, temos de ser nós, com trabalho, com regras. O futebol é muito mais que aparecer para treinar. É chegar a horas, alimentares-te bem, descansar bem…. A nossa carreira é muito exigente e é curta. Então, nesse período temos de ser profissionais ao máximo. Nas dificuldades nunca podemos desistir. É continuar a investir, investir em nós próprios, porque somos nós que vamos criar condições para reverter qualquer cenário.