"Deixei de ser jogador e decidi ser árbitro"


Aos 28 anos, o jovem árbitro ascendeu recentemente à categoria internacional da UEFA.

Quando é que começou a exercer a função de árbitro?
Fiz o primeiro jogo com 15 anos, em Braga, porque o meu pai também era militar de profissão e foi colocado no norte do país. Estive lá até aos 19 anos, altura em que mudei para a Associação de Futebol de Lisboa, porque vim estudar para a Academia Militar e isso obrigou-me a mudar geograficamente. Os exercícios da Academia Militar, em Lisboa, coincidiam com as provas escritas e físicas de início de época da Associação de Futebol de Braga e, ao não estar presente, a falta não era considerada justificada e seria penalizado caso faltasse às provas de arbitragem. Nesse caso, optei por mudar-me para Lisboa, até porque tinha cá os meus avós maternos, e consegui conciliar as duas atividades: a de militar e a de árbitro. 

O facto de ser militar de profissão ajuda-o na preparação física para os jogos?
Sem dúvida. É extremamente importante porque o facto de ser militar exige uma preparação física constante e incute, desde cedo, o gosto pela preparação física. Por outro lado, as próprias instituições com que trabalhamos dão-nos condições de treino e isso é importante para mantermos a parte física sempre ativa.

Além da preparação física, um árbitro também se prepara do ponto de vista mental para os jogos?
Sim, sem dúvida. Cada vez mais, a parte mental é trabalhada e existe um enorme investimento nesta área nos últimos anos. Entrar em campo preparado para tomar decisões é fundamental e, para tal, é importante haver essa preparação mental, conjugada com a preparação física e técnica. Quando um destes fatores falha, estão reunidas as condições para também nós falharmos.

O que pode motivar um jovem de 12/13 anos a querer ser árbitro?
Felizmente comecei cedo, com cerca de 14 anos a tirar o curso. Fiz o primeiro jogo com 15 e revejo-me muitas vezes nessa pergunta. O que me levou a ser árbitro foi a curiosidade. Não tinha ninguém na família ligado à arbitragem, não conhecia nenhum árbitro e na altura jogava futebol. Vi uns panfletos para ser árbitro e foi uma oportunidade. Tirei o curso e rapidamente, pelo grupo de treino onde participava, mudei de ideias, deixei de ser jogador e decidi ser árbitro.

Em março de 2020 fomos todos surpreendidos com uma pandemia, que parou o mundo e o futebol, em particular. O que aproveitou para fazer nos dois meses iniciais da pandemia em que o país esteve confinado?
Em termos práticos, o meu dia a dia não alterou significativamente. Tive em consideração todas as restrições que o país teve, mas tendo em conta as minhas funções profissionais, continuei sempre a trabalhar e a fazer o meu horário, o que me levou a estar ocupado a grande maioria do tempo. Por outro lado, os centros de treino fecharam e tive de fazer os treinos na rua, sozinho. Ao nível da arbitragem fiz formação online, através da plataforma zoom, que foi importante para continuar focado. Independentemente de não haver jogos e treinos, nunca desligámos da arbitragem.

“NÃO TINHA NINGUÉM NA FAMÍLIA LIGADO À ARBITRAGEM, NÃO CONHECIA NENHUM ÁRBITRO E ERA JOGADOR DE FUTEBOL. VI UNS PANFLETOS PARA SER ÁRBITRO E RAPIDAMENTE MUDEI DE IDEIAS.”

A ausência de público nos estádios, na fase inicial da pandemia, beneficiou as decisões dos árbitros dentro de campo?
Foi uma realidade nova para todos. Tivemos de nos adaptar, como se adaptou toda a gente, e na generalidade penso que a percentagem de acerto não teve alterações significativas e foi idêntica. Mas uma coisa é certa, e isto é claro para todos os árbitros. Não nos sentimos melhor a arbitrar um jogo sem público, porque consideramos que os adeptos são um elemento essencial, até pelos níveis de concentração e de ativação. Foi um dos focos que perdemos, o não haver aquele ruído que estamos habituados, da parte do público. Apesar de não ter efeitos práticos nas decisões que os árbitros tomaram, o público fez falta.

Estreou-se na Primeira Liga num Gil Vicente-Tondela, em outubro de 2020. Foi o jogo mais difícil da carreira, por ser o primeiro na Liga principal?
Não. Lembro-me do jogo como se fosse hoje. Obviamente que, por ser o primeiro, teve um acréscimo de stress, nervosismo, mas acima de tudo teve um acréscimo de motivação. É sempre o primeiro jogo, aquele em concretizamos um objetivo/sonho e por isso entramos com esse sentimento, mas ao final de cinco minutos tudo passou. Foi sem público, estávamos numa fase inicial da pandemia, mas o jogo correu bem e não considero, de todo, o mais difícil da carreira, mas um jogo que fica marcado por ser o primeiro e não o esquecerei. Continuo a usar o apito desse jogo e tem-me dado alguma sorte.

Nos jogos da Primeira Liga há videoárbitro (VAR), mas nos da Segunda Liga ainda não. Como é que se faz a transição de uma competição para a outra, sabendo que num dos casos não há o apoio da tecnologia?
É aqui que se verifica que a preparação mental para o jogo é extremamente importante. Na preparação do jogo temos de antever cenários e gerir um jogo com o VAR não é a mesma coisa sem o VAR. Com VAR, sabemos que se cometermos o erro há a possibilidade de ser corrigido, isso é uma almofada para o árbitro e temos de saber gerir isso. Gerir emoções num jogo com videoárbitro não é a mesma coisa que gerir num jogo sem VAR. A aceitação dos jogadores acaba por ser diferente, porque uma coisa é uma decisão ser validada com base na tecnologia e outra é a perceção do árbitro, certa ou errada, sem o apoio da tecnologia. Isso faz toda a diferença na gestão do jogo. O videoárbitro veio para ficar, mas temos noção que é uma tecnologia extremamente cara. Com o avançar do tempo teremos condições para replicá-lo em diferentes competições. O sistema de comunicação entre os árbitros, por exemplo, há uns anos só estava ao alcance dos profissionais e hoje em dia esse sistema já é utilizado por jovens da formação. O VAR é uma ferramenta extremamente importante para o árbitro e tem tudo para ser alargada a outras competições nos próximos anos.

Nos últimos tempos têm sido introduzidas várias alterações às leis do jogo. Há alguma lei do jogo que, na sua opinião, possa vir a ser melhorada?
Uma das alterações que se tem falado tem a ver com a implementação de duas partes com cronómetro, neste caso a parar quando a bola sai do terreno de jogo, de forma a aumentar o tempo útil. Isso é extremamente importante, à semelhança do que acontece noutros desportos como o futsal. Apenas uma ação concertada entre todos os intervenientes do futebol, jogadores, treinadores, dirigentes, árbitros, poderá ajudar a mudar este aspeto. Da forma como a lei está neste momento tem de haver uma ação conjunta no sentido de aumentar o tempo útil de jogo. Tem-se trabalhado nisso nos últimos anos, mas tem sido difícil conseguir, seja por estratégia das equipas ou inoperância da nossa parte.

Com apenas 28 anos, já ascendeu à categoria de árbitros internacionais. Chegar ao patamar de elite da UEFA, onde se encontra Artur Soares Dias, ainda é um sonho ou já é um objetivo de carreira?
Considero ainda um sonho. Gosto de definir os objetivos mais curtos no tempo. Depois de um, vem o outro e assim sucessivamente, subindo um degrau de cada vez. Ainda tenho alguns degraus para escalar até atingir esse sonho.

Antes de ser árbitro, foi jogador de futebol. Em que posição jogava?
Tentei ser jogador, jogava a central e a lateral direito e, como todas as crianças que gostam de futebol, tinha o sonho de ser jogador.