"Cada vez mais, temos jogadores com um curso superior"


Lateral direito do Vilafranquense é licenciado e está a tirar o curso de treinador.

 

Mike, começando pelo início. Ser jogador profissional sempre foi o teu sonho?
Sim, claro. Acho comum, era o sonho de qualquer criança, especialmente quando se jogava na rua, como eu jogava, algo que agora se perdeu um bocadinho. Havia aquela coisa de querer imitar os jogadores, os ídolos. Imitávamos, na minha altura, o Figo, o Zidane… E cada um encenava um jogador e quase queríamos chegar a esse patamar, a esse nível. É o sonho de qualquer um. Muitos não conseguiram, outros conseguiram chegar mais alto, outros nem tanto, mas acho que é o sonho de qualquer miúdo.

Ainda assim, não deixaste os estudos de lado e aos 24 já tinhas uma licenciatura e uma pós-graduação concluídas. Não ingressar no ensino superior nunca foi opção?
Sim. Mas também tem que ver um pouco com a forma como se desenvolveu a minha carreira. O facto de não entrar muito cedo para as ligas profissionais, em que a exigência é maior, o facto de só aos 23 anos ter ido para o Santa Clara e ter saído de casa dos pais, deu-me suporte para poder continuar os estudosTento incentivar todos os meus colegas [a prosseguirem os estudos], mas vejo que muitas vezes é complicado o trocar de clube e cidades, ano após ano. Isso complica bastante quem quer estudar. Eu percebo isto, agora, torna-se mais difícil, mas é possível. Claro que o meu percurso na vida académica foi “facilitado” porque estava em casa dos meus pais, jogava no clube da minha terra. Sim, jogava na equipa principal, mas não deixava de ser o clube da minha terra. Fafe era relativamente perto de Braga, portanto, eu ia e vinha todos os dias e conseguia conciliar as duas coisas. Percebo que há muita gente, muito jogador, que tem a vida mais complicada.

Quando foste para o Santa Clara tiveste de interromper o mestrado, mas nunca escondeste a vontade de o terminar. Já o terminaste ou ainda faz parte dos planos?
Neste momento ficou um bocadinho em standby. Na formação académica acho que não podemos escolher um caminho e fecharmo-nos nesse caminho. Quando comecei, houve muita coisa de que gostei, mas outras portas começaram-se a abrir e de certa forma, decidi que não era exatamente por ali que queria continuar, queria sim começar a encontrar as variantes. Neste momento, achei que não era necessário para mim, para aquilo que eu queria na minha vida, fazer o mestrado, mas sim ir por outro rumo. Neste momento penso recomeçar novamente.

“TENTO INCENTIVAR TODOS OS MEUS COLEGAS [A PROSSEGUIREM OS ESTUDOS], MAS VEJO QUE MUITAS VEZES É COMPLICADO O TROCAR DE CLUBE E CIDADES, ANO APÓS ANO.”

Na maioria dos casos, vemos os jogadores a seguirem por uma vertente mais desportiva nos estudos. Tu optaste por sociologia. Porquê?
É uma área de que sempre gostei muito. As ciências sociais e humanas. Perceber as pessoas perante a sociedade, saber como é que nós nos introduzimos. Toda a nossa maneira de pensar, como é que é influenciada perante a sociedade. Sempre gostei muito disto. Dessa parte, da parte dos recursos humanos, na qual me especializei mais. É uma área que já me diz mais, mas no geral sempre foi uma área que me cativou. Claro que o desporto também sempre foi algo que me cativou muito, mas dentro do que podia seguir, a sociologia foi a que mais me puxou.

Ainda assim, até ires para os Açores conseguiste conciliar. Que conselho deixas a outros jovens, para que estes não descurem a sua formação?
Acho que é algo muito importante. Pode não servir sempre para a sua carreira profissional. Acredito que muitas vezes a nível profissional possa não servir tanto, ou mesmo que sirva enveredar por uma vertente mais desportiva. Acho que é importante, também, perceber o que está por trás daquilo que fazemos em campo, ter outro entendimento das coisas e não fazer por fazer. Apesar de não acreditar que hoje em dia os jogadores pensem assim. Acho que neste momento estamos numa fase em que o jogador quer perceber, quer entender o porquê de fazer as coisas, qual o objetivo do que está a fazer. Nesse aspeto, acho que os estudos são importantes. Se optar por uma vertente de desporto, entender essa parte. Na vida pessoal, seja qual for a área que escolhamos, é importante, porque abre-nos a mente. Nunca sabemos tudoHá sempre mais alguma coisa para aprender. Conhecimento não ocupa lugar. É algo que nos puxa, que nos abre portas pós-carreira. O jogador de futebol muitas vezes ainda não está preparado [para o pós-carreira] e isso prepara-nos profissionalmente, mas também mentalmente. Dá-nos a capacidade de querer mais, de procurar mais e não nos conformarmos apenas com o que sabemos.

Sentes que o mundo do futebol está a mudar e que cada vez mais se valoriza a existência de um plano B ou a continuação dos estudos?
Sim. Sinto que o jogador de futebol está a mudar porque o futebol também mudou. O jogador de futebol começa a apostar e investir em si. Tem pessoas à volta dele que o tentam encaminhar para bons caminhos, tanto a nível de comunicação, como pós-carreira, investimentos… isto é muito importante. Nos últimos anos tem-se trabalhado muito nesse sentido e acho que aí o futebol mudou. Mudou e mudou para melhor. Ainda há um caminho por percorrer, sinto que ainda há muito jogador que ainda não está preparado para acabar a carreira. Ninguém está, mas não está pronto no sentido de acabar e pensar “o que é que vou fazer? Qual é o plano?”. Muitos jogadores não sabem o que vão fazer. Têm uma noção, mas andam um bocadinho à deriva. Sinto que há muita coisa que se pode fazer para ajudar nesse sentido.

“SINTO QUE O JOGADOR DE FUTEBOL ESTÁ A MUDAR PORQUE O FUTEBOL TAMBÉM MUDOU.”

O que pensas da aposta do Sindicato na educação dos jogadores e nas carreiras duais?
Uma das coisas que mudou no futebol, foi isto. É ter, como o Sindicato tem, essas formações, passar informação e conhecimento para conseguir mais alguma coisa. Não apenas nos conformarmos com o que acontece dentro de campo, mas para termos um olhar sobre o que se passa no mundo. Acho que o Sindicato, nesse aspeto da formação, tem muitas parcerias, o que é muito importante, e os jogadores podem aproveitar. Sinto que ainda há um percurso que o Sindicato poderá fazer, é o passo do pós-carreira. Sei que há negociações para esse pós-carreira, uma espécie de pré-reforma e eu acho que isso seria realmente importante. Nós temos esse conhecimento e começamos a abarcar uma nova realidade, mas do nada. Começamos cá em baixo, com pessoas que já iniciaram há dez ou quinze anos. Portanto, o jogador parte em desvantagem. Desvantagem a nível teórico, porque a nível prático temos muita vantagem. O jogador de futebol é uma pessoa que tem a capacidade de liderança, de raciocínio muito rápido, pelo facto de sermos constantemente postos à prova e termos de pensar rápido, temos de agir sob pressão… Isso são tudo fatores que as empresas não procuram diretamente, mas que são muito importantes. Saber agir sob pressão, nem toda a gente sabe. O que nós aprendemos na escola, não é isso. Nós aprendemos a teoria, mas depois temos de ter a capacidade de passar a teoria para a prática. E isso nós aprendemos aqui, dentro de campo, durante dez ou quinze anos ao mais alto nível. Um jogador está mais preparado para isso e muitas vezes não se puxa por aí. Acho que o jogador, se for bem capacitado, bem estimulado nesse sentido, pode dar muito mais noutras áreas da sociedade.

Sentes que ainda existe algum preconceito ou resistência das empresas em contratar ex-jogadores de futebol?
Um bocadinho, mas como disse, acho que mudou. Mudou porque cada vez mais temos jogadores com um curso superior, que procuram fazer formações, procuram mais. Procura, investe, mentalmente prepara-se melhor. O atleta em si não é tão o “burrinho” como era há uns anos. Que não eram, mas aquilo que faziam não era valorizado para a sociedade e para as empresas. Neste momento, os atletas sabem que precisam de mais qualquer coisa e vão à procura disso.

No plano desportivo, do Fafe para o Santa Clara deste um grande salto – não só a nível de patamar profissional, como distância de casa. Como foi essa primeira experiência na Segunda Liga e longe de casa?
Esse foi o maior salto que eu dei. No sentido de estar no conforto de casa, estar tranquilo, poder ter o conforto e continuar a estudar. Quando se está nessa situação e, de um momento para o outro, aparece uma proposta destas…. Claro que jogar nas ligas profissionais é sempre o nosso objetivo. Fui para uma ilha, onde fui muito feliz mesmo, acho que foi mesmo um bom passo, foram esses dois anos que me permitiram ser mais jogador e mais homem. Permitiu-me crescer muita rapidamente, porque passei de estar em casa, ter sempre tudo pronto e tudo feito, para estar sozinho, mesmo sozinho. Uma coisa é morar em Fafe, jogar no Porto, mas num instante vou a casa e volto. Ali, não. Ia a casa de três em três semanas e tinha de me safar, de me orientar e de aprender rapidamente como é que me havia de desenrascar com as pequenas coisas da vida, coisa que não me passava pela cabeça. Sei lá, coisas como cozinhar, limpar a casa, ter despesas normais, do dia a dia [risos]. Nesse aspeto considero que cresci muito como homem e muito rapidamente. Como jogador, também. Uma coisa é sermos jogador da formação, muitas vezes somos mais acarinhados, protegidos… Outra coisa é estar como os outros. Somos um jogador, temos de nos impor no campo e foi o que tive de fazer. Ainda por cima vim de uma divisão inferior, há sempre mais dificuldade, porque o olhar dos outros é sempre diferente, mas acho que as coisas correram muito bem e só tenho a agradecer às pessoas de lá.

“O JOGADOR DE FUTEBOL É UMA PESSOA QUE TEM A CAPACIDADE DE LIDERANÇA, DE RACIOCÍNIO MUITO RÁPIDO.”

Depois do Santa Clara seguiste para Chaves e fizeste parte da equipa que ajudou o clube a voltar à Primeira Liga. No entanto, não continuaste. Guardas alguma “mágoa” por não teres tido, nessa altura, oportunidade de te estreares na Primeira?
Sim, claro. No meu processo de evolução de carreira, sentia que era o momento para dar o passo. Estava preparado para dar o passo e se não desse nesse momento, as coisas poderiam começar a complicar. Ainda aguardei, mas houve ali outros fatores, coisas do futebol, e não o consegui fazer. Fui para a Covilhã, com o mister Filipe Gouveia que neste momento representa o Vilafranquense, e fiz uma época muito boa, onde me senti muito bem. Mas pronto, senti aquela mágoa de não ter dado o passo, naquele que eu sentia que era o momento certo para dar. São coisas do futebol. Tinha de dar seguimento e segui.

O futebol trouxe-te até aqui, ao Vilafranquense, e de novo ao mister Filipe Gouveia. A época está a correr como esperavas?
Sim, sim. Numa primeira fase, quando cheguei, estávamos numa posição na tabela um pouco complicada, mas as ideias do mister foram entrando, conseguimos aos poucos interiorizar e exprimir o nosso futebol e fomos subindo na tabela. Neste momento já estamos a praticar um bom futebol, estamos tranquilos e temos tudo para continuar e fazer melhor.

Com 32 anos, já começas a pensar no final da carreira ou sentes que ainda há mais por fazer ainda?
Neste momento, não penso. Não penso a curto prazo, claro que é uma coisa sempre presente. Acho que a barreira dos trinta no futebol é… o olhar dos outros muda. “Ah, 30 anos…” ou é um valor certo se não já se aposta mais nos miúdos. O futebol tornou-se num negócio, são empresas que têm de dar lucro e eu percebo perfeitamente isso. Sinto que a partir dos trinta, começaram a olhar de outra forma. Agora, se neste momento estou a pensar nisso? Não, a curto prazo, não. Mas claro que estou a pensar, porque se não, se só pensar quando acabar, vou ter um problema grande para resolver.

“A VIDA É SONHAR E TEMOS DE IR ATRÁS DO SONHO.”

Neste momento estás a tirar o nível B de treinador do curso da UEFA. É algo que te vês fazer no futuro?
Sim. Depois de estar no futebol tantos anos, é normal uma pessoa querer ficar ligada a ele. E uma das maneiras de o fazer é através dessa porta. Claro que não dá para toda a gente. Há muitos fatores e uma parte que pode ser boa para mim é a minha maneira de ser, de entender, a minha paixão pelo jogo. É algo que eu quero seguir. Acredito que posso lá chegar.

Entre a sociologia e o curso de treinador, escolhias ser treinador?
É como disse. Tantos anos ligado ao futebol, gostava de continuar. Agora, eu acho que a minha área de estudos pode ajudar. O curso serviu-me de muito. A organização em trabalho, a gestão de recursos humanos… O ser treinador também vai muito nesse sentido – gerir pessoas. Claro que com o que eu tenho – a parte prática de jogar há 15 anos e a parte teórica da gestão de pessoas – acho que tem tudo para dar certo. Agora falta a prática, prática [risos] e veremos se vai dar tudo certo.

Que sonhos ainda te restam enquanto jogador?
Sempre tive um sonho. Não é algo que eu queira a todo o custo. Já o tive mais, que era o chegar à Primeira Liga. No Chaves achei que ia ser o momento de dar o passo e não o dei. Foi sempre um passo que me faltou dar e sempre quis. Agora, enquanto não acabar, acredito. Acredito sempre. A vida é sonhar e temos de ir atrás do sonho.