"Há sempre tempo para tudo: treinar, descansar e estudar"


Licenciado em engenharia mecânica, o lateral esquerdo ajudou o Gil Vicente a chegar às provas europeias.

 

Enquanto filho de jogador, sempre quiseste ser profissional de futebol?
Sim. Desde muito pequeno que acompanhei o meu pai para os treinos, para os jogos. Acho que é sempre o sonho de qualquer menino ser jogador de futebol e como tinha o exemplo do meu pai sempre foi, desde cedo, o meu sonho também.

Como é a experiência de crescer no futebol com um pai que foi jogador?
Foi muito divertido. Ia para os treinos e divertia-me muito, deitava-me no meio da relva, sonhava com aquilo, que um dia ia estar ali a jogar. À medida que fui crescendo passei para apanha-bolas, passei a estar sempre ali perto e era uma sensação muito boa.

Ele foi, de certa forma, “culpado” por nunca teres largado os estudos?
Ele e a minha mãe. O meu pai estava por dentro do mundo do futebol, sabia como era e a minha mãe sempre quis que tanto eu como o meu irmão tirássemos um curso superior. À medida que fui crescendo e entrando no mundo do futebol júnior e sénior, apanhei ali uma fase muito má do Famalicão e então tomei a decisão de tirar o meu curso. Eu via como estava o futebol e não queria passar por aquilo que muitos dos meus colegas estavam a passar.

“FUI TRABALHAR, MAS DISSE LOGO “VOU ARRANJAR UMA EQUIPA PARA TREINAR À NOITE”. UMA PESSOA SONHA SEMPRE EM JOGAR.”

Tens uma licenciatura em Engenharia Mecânica. Porquê esta área?
Escolhi este curso porque queria algo ligado à engenharia. Estava indeciso entre Engenharia Mecânica e Gestão Industrial. Eu sei que muitos jogadores não seguem por esse caminho, mas desde muito cedo que pus na minha cabeça que não queria seguir desporto nem nenhuma área assim. Optei pela engenharia mecânica.

Como conciliaste os estudos com o futebol?
Não foi fácil. Tirei a licenciatura, que deveria ter sido de três anos, mas fiquei com algumas cadeiras para trás, normal. É um bocado difícil estudar e treinar. Naquela altura treinava à noite, levantava-me às seis da manhã para ir para a faculdade, passava lá o dia, voltava a correr para ir treinar. Era difícil, mas consegui conciliar com grande esforço.

Depois da licenciatura e do Famalicão, seguiste para o Vizela e começaste a trabalhar na tua área. Trabalhar e jogar foi ainda mais desgastante?
Depende das alturas. Já tinha o meu curso, pensei que não ia ter mais oportunidades no futebol profissional, então enveredei por uma carreira no meu curso. Surgiu a oportunidade, fui trabalhar e treinava à noite. Tinha semanas difíceis, quando o trabalho era mais puxado. Houve uma altura em que entrava às seis da manhã, trabalhava oito ou mais horas, ia só a casa tomar um banho e ia treinar, para chegar a casa às nove da noite. Nessa altura acumulou ali um bocado de trabalho, a empresa estava a crescer e foi complicado. Chegava ao final da semana e só tinha o sábado para descansar.

“OFERECERAM-ME UM CONTRATO DE DOIS ANOS E DISSE PARA MIM: “VOU ACEITAR, APROVEITAR, CUMPRIR O MEU SONHO E NEM QUE NO FINAL DO CONTRATO TENHA DE VOLTAR A TRABALHAR, MAS VOU JOGAR NA PRIMEIRA LIGA!”

Nunca pensaste pôr o futebol de lado?
Não. Fui trabalhar, mas disse logo “vou arranjar uma equipa para treinar à noite”. Uma pessoa sonha sempre em jogar. Passei o futebol para segundo plano, mas nunca o deixei de parte. Surgiu então o Vizela, que treinava à noite na altura e fui para lá.

Do Vizela e do Campeonato de Portugal, deste o salto para o Boavista e Primeira Liga. Aos 26 anos, ainda esperavas chegar ao principal escalão?
Uma pessoa tem sempre aquele sonho de chegar à Primeira Liga e esse sonho nunca morre, mesmo estando a treinar à noite. Eu comprometi-me a passar o futebol para segundo plano, mas esse sonho nunca tinha desaparecido. Estive três anos no Vizela a trabalhar e a jogar até surgir a oportunidade. Falei com quem tinha de falar e disse que era o sonho de qualquer pessoa no futebol jogar na Primeira Liga. Ofereceram-me um contrato de dois anos, então disse para mim “vou aceitar, aproveitar, cumprir o meu sonho e nem que no final do contrato tenha de voltar a trabalhar, mas vou jogar na Primeira Liga!”

Chegas à primeira Liga e voltas a estudar. Porquê?
Voltei porque achava que tinha tempo livre. Como aprender nunca é uma perda de tempo, decidi tirar um mestrado. Inscrevi-me na faculdade, fiz algumas cadeiras, depois fui para fora e então não o terminei, mas agora já o estou a acabar. Este ano tenho que entregar a tese para o concluir.

UMA PESSOA NÃO SABE O DIA DE AMANHÃ E SE TIVERMOS ESSA BASE, SABEMOS QUE SE NÃO HOUVER O FUTEBOL, HÁ OUTRA COISA.”

Uma vez mais, tiveste de conciliar os estudos com o futebol. Foi mais fácil durante o mestrado ou durante a licenciatura?
Desta vez foi muito mais fácil. Uma pessoa também já é mais madura, já se consegue organizar melhor.

O que consideras fundamental para conseguir gerir as duas coisas?
O mais importante é a organização do nosso tempo. Não podemos dar desculpas que não temos tempo, que estamos cansados e isso. Há sempre tempo para tudo: treinar, descansar e estudar. Pode ser um sacrifício, mas no fim temos a recompensa.

Achas que cada vez mais os jogadores apostam na sua formação?
Sim. Vê-se alguns a apostar. Não todos ainda, mas alguns já apostam bastante na educação. Acho que a influência de uns sobre os outros é fundamental. O mundo do futebol também está, cada vez mais, a mostrar isso: é preciso mais além do futebol. Há pessoal que pensa nisso e então apostam nesse caminho dos estudos.

“QUANDO TERMINAR A CARREIRA, SE ACABAR A ÉPOCA EM MAIO, SEI QUE EM JUNHO OU JULHO VOU ESTAR A TRABALHAR NO MEU RAMO.”

Sentes que, mesmo assim, há ainda um longo caminho a percorrer, especialmente junto dos mais jovens?
Sim, sim. Há um caminho muito longo. Quando se vai para um clube treinar com 11 ou 12 anos o que se pensa logo é “eu quero ser jogador de futebol, eu vou ser jogador de futebol” e esquece-se o resto. Mas toda a gente sabe que isso é muito difícil e tanto podemos estar muito bem no futebol, como de um ano para o outro não ter nada. Temos de ter uma base, que pode ser através dos estudos, para quando acontecer alguma coisa, como lesões por exemplo. Uma pessoa não sabe o dia de amanhã e se tivermos essa base, sabemos que se não houver o futebol, há outra coisa e podemos continuar com a nossa vida. Não temos o futebol, que é o sonho, claro, mas temos outra coisa que também nos ajuda a alcançar outros sonhos.

Que opinião tens sobre o trabalho do Sindicato na área da educação?
O Sindicato tem feito um bom trabalho. Tem boas dinâmicas e tem mostrado isso junto dos mais jovens, especialmente.

O mestrado está de alguma forma ligado à tua licenciatura. É algo que te vês a fazer no futuro, especialmente já tendo tido experiência na área?
Sim. Estou a tirar o mestrado em Gestão Industrial. Como já tive um bocado dessa experiência, optei por esse mestrado. No futuro é isso que quero fazer.

Nunca se está preparado para terminar a carreira, mas sentes que tens o teu futuro pós futebol assegurado?
Sim. Sei que o curso que tenho tem procura e, portanto, acredito que vou ter sempre emprego. O terminar a carreira… Posso não estar preparado, mas é como digo a toda a gente. Quando terminar a carreira, se acabar a época em maio, sei que em junho ou julho vou estar a trabalhar no meu ramo.

Para terminar: porquê Talocha?
[risos] A alcunha já vem do meu pai e eu como primeiro filho fiquei com o Talocha pequeno. Fui crescendo e foi ficando o Talocha. O meu pai não quis estudar, então o meu avô pô-lo a trabalhar nas obras e foi aí que ele ganhou a alcunha. Eu como filho, herdei-a.