“Licenciar-me foi das melhores decisões que tomei”


Guarda-redes Carlos Henriques, do Torreense, formou-se em gestão de recursos humanos.

Iniciou o seu percurso no futebol em Silves, estreou-se na Primeira Liga pelo Portimonense, mas é no Torreense que tem um objetivo por cumprir.

Licenciado em gestão de recursos humanos, o guarda-redes Carlos Henriques sublinha a importância da formação académica para salvaguardar o pós-futebol.

Carlos, começando pelo início. Ser jogador profissional sempre foi o teu sonho?
Sim. Não posso dizer que tenha sido um objetivo desde o início, mas um sonho sim. Toda a criança que cresce com uma bola nos pés chega a uma altura da adolescência em que acaba por se tornar um objetivo. Sempre foi um sonho e tornou-se um objetivo quando cheguei à equipa profissional do Portimonense, na Segunda Liga, com 17 anos.

E porquê a posição de guarda-redes?
Primeiro porque o meu pai também era e desde que me lembro de ir ver os jogos ao estádio, de olhar para ele na baliza, era sempre uma personagem diferente, com um equipamento diferente, e depois para seguir as pisadas dele, se bem que ele não queria que eu fosse, mas foi mais forte que ele. No primeiro jogo das escolinhas o treinador disse-me para experimentar a baliza, eu gostei e a partir daí nunca mais quis largar.

Concluíste a licenciatura em gestão de recursos humanos aos 25 anos. Foi difícil conciliar o futebol com a escola nesse período?
Foi um desafio. Difícil não tanto, até porque tive a ajuda de duas pessoas muito próximas e consegui gerir muito bem os períodos de descanso. Tirei o curso no horário de tarde/noite e tive a ajuda dos professores e do reitor da escola, que eram muito compreensivos quando havia testes e trabalhos. Tirou-me horas de sono, mas consegui gerir isso muito bem durante os três anos em que lá estive.

Porquê a área da gestão de recursos humanos?
Sempre fui um bocado fascinado pela parte da gestão, mais propriamente a gestão de empresas. Essa vertente sempre me agradou. A parte da gestão de recursos humanos foi porque no futebol costumamos ter muita convivência com seres humanos. Foi das melhores decisões que tomei, para me dar uma segunda opção, porque o futebol pode acabar a qualquer momento por causa de uma lesão ou outro azar. Tornou-se muito mais seguro e tranquilizante saber que, alguma coisa que me aconteça, tenho outro caminho por onde poder seguir.

“HOJE OS JOGADORES TÊM A PARTE DO GINÁSIO, A ALIMENTAÇÃO, O DESCANSO, MAS TEMOS TEMPO SUFICIENTE PARA DEDICAR AOS ESTUDOS E À FORMAÇÃO FORA DO FUTEBOL.”

Além da licenciatura, sabemos que trabalhaste como voluntário no banco alimentar contra a fome. O que te levou a fazê-lo?
Isso começou através da minha família porque a minha prima e a minha tia foram ambas presidentes do banco alimentar do Algarve e elas sempre me incutiram esse espírito voluntário e, na altura, estava no 12.º ano e acabei por fazer um trabalho final de projeto lá. Foi muito recompensador o trabalho que fizemos.

Que conselho deixas aos jovens jogadores que pensam deixar cedo os estudos?
Não o façam. Se têm a possibilidade, especialmente depois do covid, porque o surgimento de plataformas online permite acabar o curso dessa forma. Se hoje temos acesso a toda essa informação que nos facilita a vida, podemos fazer em casa e a qualquer hora. Muitas universidades permitem fazer tudo a partir de casa. Para mim é um segundo caminho, que está sempre como uma segurança. Conseguimos explorar as nossas potencialidades aqui, no clube, e estamos mais livres mentalmente. Hoje os jogadores têm a parte do ginásio, a alimentação, o descanso, mas temos tempo suficiente para dedicar aos estudos e à formação fora do futebol, mas o futebol não é só tirar o curso de treinador. Temos diretor desportivo, team manager, CEO dos clubes, tudo. O futebol engloba áreas diversas que podem ser aproveitadas pelos jogadores.

Sentes que o mundo do futebol está a mudar e que cada vez mais se valoriza a existência de um plano B ou a continuação dos estudos?
Sinto que há associações que estão a trabalhar nesse sentido. Ainda é um assunto um pouco esquecido, porque hoje os jovens têm mais acesso a um sonho ou a um futuro que quando comecei não era assim tão amplo. Hoje as crianças têm mais o objetivo do que o sonho do futebol, por isso é muito importante o trabalho do Sindicato de promover essa formação, porque são raros os casos de amigos de infância que se tornam profissionais de futebol, que conseguem fazer disso uma carreira longa e criar bases para sustentar o pós-futebol. É muito importante que essa mentalidade de formação e segundo caminho seja dinamizada.

O que pensas da aposta do Sindicato na qualificação dos jogadores e nas carreiras duais?
Estou completamente de acordo e sou muito fã de alguns cursos que dinamizam. Acho importante para o jogador, que hoje é profissional, ter essa informação e conseguirem chegar a muitos jogadores e aos clubes, para que o jogador consiga entender que consegue fazer algo mais do que o foco único e exclusivo que tem.

“NÃO SEI QUANDO VOU ACABAR A CARREIRA, MAS A MINHA IDEIA SERIA POR VOLTA DOS 36 ANOS, PARA NÃO COMEÇAR MUITO TARDE NAQUELA QUE É A NOSSA SEGUNDA VIDA.”

Sentes que ainda existe algum preconceito ou resistência das empresas em contratar ex-jogadores de futebol?Não sei, espero não descobrir. Mas acho que sim, se bem que hoje já está um pouco diferente aquele preconceito que existia sobre o jogador, que só servia para dar uns pontapés na bola. O jogador tem muitas características que dá jeito a muitas empresas, desde o gerir pessoas, gerir horários, a capacidade e o foco no trabalho, a capacidade de gerir oscilações, manter o equilíbrio emocional, são características que se forem pesadas por uma empresa na contratação de funcionários podiam ser bastante valorizadas. Um jogador que acabe aos 35, 38 anos é jovem, mas para o mercado de trabalho é visto como um retardatário e as empresas têm dificuldade em ver as características inerentes a um jogador de futebol, que são uma mais-valia para o funcionamento de uma empresa.

Só deixaste o Algarve depois de concluíres a licenciatura. Isso significa que a tua prioridade era concluir os estudos e só depois investir na carreira de jogador?
Não, nunca foi. Quando assinei o primeiro contrato profissional com o Portimonense, foi ainda antes de entrar para a universidade. Depois falei com os meus pais e tentei fazer os dois percursos, no futebol e na universidade. Entrei em gestão na universidade do Algarve e depois entrei no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), que tinha um protocolo com o Portimonense, para fazer o curso de gestão de recursos humanos. Aí consegui criar esse equilíbrio. A razão de ficar em Portimão foi porque calhou bem.

O futebol trouxe-te até aqui, ao Torreense. É o clube onde estás há mais tempo desde que saíste do Portimonense. Vir para cá foi uma aposta ganha?
Foi, claramente. Ter vindo num ano que foi de sucesso para o clube, onde ganhámos a primeira Liga 3, subimos de divisão e foi no ano em que foi criado esse objetivo e a cidade, as pessoas que conheci neste clube, desde o staff até à presidência, são incríveis. Tenho cá muitos amigos e tem sido uma experiência incrível, por isso é que tenho o gosto de cá continuar.

Já tens ideia de quando é que vais terminar a carreira e tencionas ficar ligado ao futebol ou trabalhar na área dos recursos humanos?
Todo o jogador cria o momento em que vai terminar. Acho que o mercado de trabalho está virado para os jovens. Não sei quando vou acabar, mas a minha ideia seria por volta dos 36 anos, para não começar muito tarde naquela que é a nossa segunda vida. Gostava de ficar ligado ao futebol, mas apenas na premissa de ser dirigente ou presidente do clube da minha terra, o Silves. Não me vejo a continuar ligado ao futebol, a não ser através dos amigos. Vejo-me a enveredar num caminho de negócio ou de gestão, do que propriamente no futebol.

Ainda tens alguns sonhos por cumprir no futebol?
Tenho, claro. Voltar à Primeira Liga com o Torreense foi um projeto que me foi proposto quando cá cheguei e se assim o clube o quiser e eu também, é uma coisa que ainda tenho por concretizar na minha cabeça. Estive um ano na Primeira Liga, com o Portimonense, é sempre o patamar mais elevado do futebol português e qualquer jogador quer lá chegar. Se não me for permitido, o único sonho que tenho é manter-me na minha caminhada até o meu corpo me deixar.