"Todas as jogadoras deviam ter uma oportunidade de ir jogar para fora"


Médio portuguesa representa o Orobica, de Itália, na primeira experiência no futebol europeu.

Jogavas no Damaiense e em dezembro mudaste-te para o Orobica Calcio Bergamo, um clube da Segunda Divisão italiana. Como é que surgiu essa hipótese?
Não tinha muitos minutos de jogo no Damaiense e falei com a Raquel [Sampaio], da KSirius, para ver se conseguia arranjar-me um clube no estrangeiro porque o meu objetivo era mesmo sair de Portugal. Essa oportunidade surgiu em dezembro e aceitei. No entanto, não foi uma decisão fácil de tomar porque tinha acabado de chegar dos Estados Unidos e estava a habituar-me ao jogo português e a estar perto da família. Mas o sonho falou mais alto e lá fui eu.

Quais são as principais diferenças entre a Segunda Liga italiana e o nosso campeonato?
Não quero criticar a liga portuguesa, como é óbvio, mas sinto que a maior diferença é o profissionalismo, a mentalidade das jogadoras e a intensidade do jogo. Sinto que aqui, na Segunda Divisão, somos mais profissionais do que na Primeira Divisão portuguesa, quando estava no Damaiense.
Tive oportunidade de trabalhar uma semana num dos grandes, o Benfica, e sinto que aqui as condições são muito parecidas com as dos grandes em Portugal.

Quais são os objetivos do Orobica?
Este ano o nosso objetivo é voltar à Serie A. Temos tido alguma dificuldade no último terço do campo mas ainda falta muito campeonato pela frente. Desde que aqui estou, jogámos cerca de cinco jogos, tendo empatado quatro e ganho um. Tenho a certeza que os golos e as vitórias iram surgir brevemente.

O clube é rival da Atalanta?
Pelo que ouvi de um dos dirigentes do Orobica, a Atalanta já não existe. Senão sim, seria um dos nossos rivais.

Antes jogaste três anos e meio pela Universidade de St. Francis. O que é que te levou aos Estados Unidos?
Foi a oportunidade de viver uma experiência única, na NCAA, a Primeira Divisão do campeonato universitário, e ter uma bolsa de estudo a 100%. Os meus pais sempre me incentivaram a estudar e a jogar à bola, e achei que fazer as duas coisas ao mesmo tempo seria uma oportunidade única, não tendo essa oportunidade em Portugal.

Como é que correram os estudos?
Acabei agora em dezembro a licenciatura em Psicologia e em Artes.

Em Artes também?
Sim, são os chamados minors. É um mini-curso. Tirei o major em Psicologia, que é o principal, e o minor em Artes.

É curioso serem áreas tão distintas.
Gosto muito de Artes. O meu pai é pintor, ou era, agora já não pinta, mas pintava em aguarela.

É o segundo país estrangeiro no qual vives. Tens espírito de aventura para descobrir novos países e culturas?
Tenho, apesar de adorar Portugal. Adoro o meu país e sou apaixonada pela minha cidade, que é Setúbal, mas desde que fui para os Estados Unidos ganhei o gosto por viajar. E espero viajar muito.

Bergamo foi das cidades mais fustigadas pelo Covid-19 no primeiro confinamento. Como estão as coisas agora?
Desde que cheguei, em dezembro, sempre houve muitas regras. Ao contrário de Portugal, no Natal e no Ano Novo, aqui não houve ninguém a sair de uma casa para outra. Estávamos numa zona laranja e passámos para zona vermelha, acho que a partir de 20 de dezembro, ou seja, ninguém podia sair para lado nenhum, nem sair da nossa área de residência. Desde essa altura até meio de janeiro estivemos em zona laranja e há cerca de dois dias passámos para amarela. Está a melhorar.

Adaptaste-te bem à cidade?
Sim. Adorei e estou a adorar. Até já disse à minha família que, se calhar, quando acabar a minha carreira no futebol, venho para cá morar. A comida aqui é fantástica, as pessoas são fabulosas, a cultura, a arquitetura.... Acho que é tudo fantástico.

O que é que recomendas visitar? Se é que, nesta fase, pudeste visitar alguma coisa....
Tive oportunidade de passar umas horas no centro da cidade e é lindíssima. Há um café, que foi onde inventaram a stracciatella, chamado La Marianna. Tem o meu nome, tenho de lá ir! [risos]

Sempre te habituaste bem à língua, comida, trânsito ou houve alguns percalços pelo meio?
Nos Estados Unidos senti um choque com a cultura. Não sabia falar muito bem inglês, mas aprendi muito rápido. Depois os horários das refeições são completamente diferentes, tal como a comida.

Como eram os horários?
Tínhamos um treino físico logo de manhãzinha, às 6 ou 7 horas já estávamos a treinar. Tomávamos o pequeno-almoço por volta das 8, o almoço ao meio-dia e o jantar era por volta das 17h30, 18h. Era muito cedo. O refeitório fechava às 20h, então nós, os internacionais, tínhamos ali um problema grande por comermos tão cedo e ficávamos lá até fechar. [risos]

Calculo que tivesses de inventar uma ceia depois.
Ah, sim, sim. Eles lá também são especialistas em snacks.

“TENHO UMA BOA VISÃO DE JOGO, SOU TECNICISTA, E ÀS VEZES INTITULAM-ME COMO A MENINA DOS PÉS DE OURO E DOS FAMOSOS CALÇÕES BRANCOS, PORQUE NUNCA ME SUJO [RISOS].”

 

O que é que levavas na mala sempre que vinhas a Portugal?
Normalmente, como ia com as malas muito cheias, não podia levar comida, mas pedia à minha mãe para me mandar Cerelac, Nestum, Pensal, bolachas Maria.... Mandava-me montes de comida, coisas que não haviam lá. E também viajava com os meus dois palhaços, que ando sempre com eles.

Dois palhaços?! Como assim?
São dois bonecos que estão sempre comigo, desde os meus dois anos. Toda a gente que se dá comigo conhece-me por ter dois palhaços. E a reação das pessoas no aeroporto era engraçada. Começavam por se rir, depois perguntavam-me se eram para doar. “Não, são meus!” e por isso achavam muito engraçado. [risos]

Pensas em regressar ou preferes continuar a carreira no estrangeiro?
Se a oportunidade de regressar a Portugal fosse para mudar para melhor, eu regressaria. Estou de braços abertos para tudo, as oportunidades surgem, eu aproveito-as, quero sempre mais. No entanto, não sinto que o futebol em Portugal esteja no mesmo patamar que nalguns países cá fora. Dos Estados Unidos para o Damaiense, senti uma grande diferença e acho que todas as jogadoras deviam ter uma oportunidade para ir jogar para fora, experienciar outra realidade e ter coragem para o fazer. Quando essa oportunidade surgir vão sem medo. E se o medo estiver presente, metam-no dentro da mala e levem a mala com o medo. Ao chegarem ao vosso destino, tocam na bola e o medo passa. Tenham coragem e lutem pelos vossos sonhos porque só nós é que os podemos concretizar.

Para quem nunca te viu jogar, como te descreves?
Tenho uma grande paixão pelo desporto, mas falando em termos mais técnicos tenho uma boa visão de jogo, sou tecnicista, e às vezes intitulam-me como a menina dos pés de ouro e dos famosos calções brancos, porque nunca me sujo [risos].

Jogas no meio-campo, certo?
Normalmente, sim. No entanto, aqui estamos a jogar de uma forma um bocadinho diferente. Como a treinadora prefere jogadoras mais defensivas no meio-campo, tenho atuado mais na linha da frente, como extremo ou avançada.

Então estás mais perto do golo.
Sim, ainda não marquei mas os golos vão surgir.

Por cá, representaste Palmelense, Quintajense, CAC, Estoril e Damaiense. O que te fez mudar sucessivamente de clube?
Sempre quis mudar para melhor e os clubes em Portugal não são muito constantes. Na altura, a equipa toda do CAC foi para o Estoril, depois a equipa do Belenenses foi toda para o CAC. Não dependeu só de mim, também houve fatores externos. Mas sempre procurei ir para melhor.

O teu irmão Manuel também era futebolista. Ele continua a jogar?
[Risos] Não. Ele é completamente diferente de mim. Aliás, não tenho ninguém na família que jogue à bola, sou a única, e o Manuel é uma pessoa que gosta de variar e todos os anos está em desportos diferentes. Nunca quis saber do futebol. Ele não gosta da competição, gosta de fazer tudo por diversão.

Só tens esse irmão?
Tenho mais dois irmãos e uma irmã, todos mais velhos.

E eles também praticaram desportos?
Um dos meus irmãos é engenheiro informático. Praticou karaté e neste momento faz crossfit. A minha irmã é Educadora de Infancia. Também fez karaté mas não é muito ligada ao desporto.

Segundo o site da FPF, foste internacional sub-16. Também o foste noutros escalões?
Não. Ainda estive nalguns estágios, mas ficou por aí.

Ser internacional A é o principal objetivo da tua carreira?
Um dos, sem dúvida. Tenho uma paixão muito grande por Portugal. É engraçado, quando estava nos Estados Unidos, o que via para me motivar antes dos jogos eram sempre aqueles vídeos que o Guilherme Cabral fez sobre Portugal, ouvia muita música portuguesa e tudo o que era português dava-me força para todos os jogos. Portugal traz de mim o meu melhor!

Por último, qual é a tua opinião sobre o trabalho do Sindicato dos Jogadores no futebol português?
Vou ser muito sincera: há uns tempos precisei do Sindicato e foi sempre muito prestável. Sempre me apoiou e continua a apoiar. Quando surgiu a oportunidade de vir para Itália foi o Sindicato que leu o meu contrato, que me deu o aval para assinar e estão sempre ao meu lado. Sempre que precisar de alguma coisa sei quem contactar. Estou em Itália, sei que é um país conhecido por deixar de pagar às jogadoras e por outros conflitos, mas sinto-me segura por ter o Sindicato sempre ao meu lado. A Carla Couto, que é com quem falo mais, ou o Dr. João Oliveira, estão sempre disponíveis.

Fotos: Valentina De Cani.