Quero, posso e mando: a arte de navegar à vista
O anúncio público inopinado do processo para revisão da lei de bases do desporto e o corte aos benefícios fiscais do programa ‘Regressar’ são apenas dois exemplos da navegação à vista do Governo em matéria de desporto.
Matérias estruturais como estas deveriam, em primeiro lugar, fazer parte do programa de Governo, em segundo lugar seria conveniente que viessem acompanhadas de uma exposição de motivos e, finalmente, merecer a auscultação dos agentes desportivos, seja individualmente, seja no órgão próprio: o Conselho Nacional do Desporto.
Infelizmente, quem pode manda. Produzir ou atualizar legislação sem ter presente a realidade deste setor e sem ouvir os seus principais intervenientes tornou-se um padrão de conduta por quem nos governa e rapidamente ganhou adeptos, sobretudo no futebol.
Esta conduta autoritária, com ausência de um rumo e diálogo sérios, potencia insegurança para os agentes desportivos, permite que os interesses mais fortes se sobreponham, gera um clima de claustrofobia e iliteracia, tanto cívica como desportiva, enfraquecendo o movimento associativo e desumanizando o desporto.
A maioria sabe que é assim. Há anos que vivemos uma hipocrisia traduzida na ideia de que a falta de atenção da opinião pública àquilo que se passa fora dos recintos desportivos permite que se faça quase tudo. Reconheço que a postura de muitos agentes desportivos, pela ausência de pensamento crítico, ou pela dependência económica, facilita a tarefa. As pessoas acomodaram-se.
O programa ‘Regressar’ foi decisivo para o retorno de jogadores internacionais de inegável talento, qualidade e experiência, com influência na competitividade e qualidade das competições.
Sem desconsiderar o caráter transversal deste programa e, portanto, do corte efetuado, lamento que os principais visados no desporto, os praticantes, não tenham sido chamados a pronunciar-se e que uma medida desta natureza, um dia seja aplaudida e no dia seguinte seja diabolizada. A par disto, acho inconcebível que a realidade dos desportistas profissionais se traduza na total desconsideração da sua atividade de desgaste rápido e curta duração, em matéria fiscal ou previdencial.
Entretanto, com o país a arder com as políticas fiscais, de saúde e habitação, somos surpreendidos com a "necessidade" de alterar a lei de bases do desporto. Sem aviso prévio, sem justificação e, aparentemente, sem critério. A julgar pelo que tenho assistido, na ótica do praticante temo pelo desfecho deste processo. Tenho aprendido que no desporto, como na vida, começa a valer tudo.
Artigo de opinião publicado em: jornal Record (22 de outubro de 2023)