Futebol puro vs. Futebol indústria

Numa altura em que se perspetiva uma mudança de ciclo no futebol português e porque tive interações recentes sobre este tema, sou convocado a refletir sobre a prevalência que hoje o futebol indústria tem sobre o futebol puro.
Será que, indiscutivelmente, estamos a perder a paixão pelo jogo, que é matriz essencial do talento que emerge no nosso país? Na verdade, nenhum vive sem o outro, é do sonho dos meninos e meninas na base da pirâmide e do trabalho de muitos dirigentes e colaboradores voluntários, que se progride de forma tantas vezes invisível para o patamar de excelência, não sendo menos verdade que parte do desenvolvimento existente na base beneficia do reinvestimento que só é possível com as receitas do futebol indústria, ou envolvimento dos municípios no financiamento ou apoio com infraestruturas.
Existem, no entanto, cada vez menos espaços seguros na rua. Brincar através do futebol, em certa medida, vai perdendo adesão. Revivendo a infância nas ruas de Bragança, em que o campo era medido à distância de duas balizas marcadas por pedras, e comparando com o negócio em que se tornou a formação, alegro-me por saber que, fora do sistema desportivo, formal e competitivo, em diferentes faixas etárias, continuam a existir grupos informais que refletem o porquê do futebol ser o verdadeiro rei do desporto português. Estes grupos tornam-se pequenas comunidades, onde se constroem relações que afastam divergências entre pessoas com contextos pessoais, familiares e profissionais muito diversos. Haverá alguma coisa mais importante do que isto? Um simples jogo que pode ser utilizado para unir, somar, aproximar?
Tenho a felicidade de integrar um espaço assim, sobre o qual já escrevi anteriormente. Sobre o "clube mais antigo do mundo", em Torres Vedras, sem esquecer cada um dos seus fantásticos membros, não posso deixar de enaltecer a generosidade de dois irmãos, o Ricardo e o Bernardo, rostos por detrás do sucesso da Riberalves e do projeto Adega Mãe, que oferecem aos amigos a oportunidade de viver o melhor que o futebol puro tem para oferecer. Correndo o risco de cometer uma inconfidência, recentemente soube que o Ricardo já manifestava durante a juventude, no seu círculo próximo, o sonho de ter um campo de futebol para jogar com os amigos.
Haverá sonho mais bonito do que este? Criar um espaço que seja o ponto de encontro daqueles que nunca deixaram cair o futebol puro? Ainda há esperança, ele não morreu, mas podemos e devemos cuidar melhor dele.
Artigo de opinião publicado em: jornal Record (19 de janeiro de 2025)