Jogadores, trabalho e concorrência: a mesma luta?


  1. A concertação ilegal e a intervenção da Autoridade da Concorrência

Já tinha tido oportunidade de escrever: «Os patrões do futebol não podem, como quaisquer outros patrões, elaborar uma espécie de “lista negra” de jogadores que, por terem rescindido o contrato de trabalho (note-se: apenas por terem rescindido, sem ou mesmo com justa causa), serão ostracizados pelos restantes e, no que deles depender, votados ao desemprego.

Estes são acordos limitativos da concorrência entre os clubes no mercado de trabalho desportivo, típicos de um cartel, que sacrificam um direito fundamental dos trabalhadores, de qualquer trabalhador, que é a liberdade de trabalho – e cujo valor jurídico é, portanto, equivalente a zero. Não deixa, ainda assim, de impressionar a tranquilidade com que os patrões do futebol anunciam e publicitam os seus acordos, mesmo aqueles cujo conteúdo é rotundamente ilegal. Falta de consciência da ilicitude? Talvez. Mas também, creio, alguma falta de pudor».

Entretanto, a Autoridade da Concorrência (AdC), órgão público responsável pela promoção e defesa da concorrência em Portugal, entrou em cena. E muito bem. A AdC interveio, através da seguinte decisão, expressa no comunicado n.º 08/2020, de 26 de maio, com o título “Covid–19: AdC impõe medida cautelar à Liga Portuguesa de Futebol que suspende deliberação concertada de impedir contratação de futebolistas”:

«A AdC ordenou à Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) a suspensão imediata da deliberação que impede a contratação pelos clubes da Primeira e Segunda Ligas de futebolistas que rescindam unilateralmente o contrato de trabalho invocando questões provocadas pela pandemia do Covid-19.

A medida cautelar hoje decidida pela AdC impõe-se perante o potencial impacto grave e irreparável de uma prática suscetível de lesar as regras da concorrência e que foi objeto de abertura de um inquérito tendo por visada a LPFP.

A LPFP emitiu comunicados que fazem referência a uma deliberação adotada por acordo entre os clubes da Primeira e da Segunda Ligas enquanto associados da LPFP e com a participação do respetivo presidente, definindo que os clubes não contratarão jogadores que rescindam unilateralmente o seu vínculo laboral por questões provocadas pela pandemia Covid-19.

Através de um acordo de não contratação, as empresas abstêm-se de contratar os trabalhadores umas das outras, deste modo renunciando à concorrência pela aquisição de recursos humanos, para além de privarem os trabalhadores da mobilidade laboral.

O comportamento identificado poderá criar condições de atuação no mercado que não correspondem às suas normais condições de funcionamento, podendo provocar um impacto negativo para a economia e para os consumidores.

Os acordos de não contratação, assumindo a natureza de restrições de cariz horizontal, entre empresas concorrentes, têm sido considerados restrições graves da concorrência por parte das autoridades da concorrência americanas e europeias.

A AdC aproveita para alertar as empresas para o facto de medidas excecionais para fazer face à pandemia Covid-19 não deverem ser objeto de concertação entre empresas concorrentes, que continuam impedidas de fazerem acordos entre si para repartir mercados, definir preços ou outras condições comerciais ou, como no caso dos clubes de futebol, renunciarem à concorrência pela aquisição de recursos humanos, já que estes acordos são puníveis nos termos da Lei da Concorrência.

Em conclusão, a deliberação da LPFP de 8 de abril cessa a sua vigência com efeitos imediatos, não entra em vigor nem produz quaisquer efeitos, nos termos da decisão da AdC.

A AdC determina ainda que a LPFP comunique a todos os clubes seus associados a suspensão da decisão de 8 de abril e que emita um comunicado de imprensa dando conhecimento do mesmo facto.

Por cada dia de atraso na adoção das medidas cautelares determinadas, a LPFP fica condenada ao pagamento no valor de 6.000 euros».

 

  1. Uma intervenção justificada e oportuna

Pela minha parte, não posso senão aplaudir esta decisão da AdC. O acordo interclubes em causa é rotundamente ilegal. Viola, como referi, o disposto no art. 138.º do Código do Trabalho, em matéria de liberdade de trabalho. E viola também, como a AdC indicou, a legislação da concorrência.

É certo que a questão da aplicabilidade das leis da concorrência nesta matéria não é inteiramente pacífica. A legislação antitrust, diz-se por vezes, visa preservar uma livre e justa concorrência e evitar os monopólios, tendo como escopo principal, se não exclusivo, a proteção dos interesses do público/consumidor — os seus objetivos consistem na garantia do chamado consumer welfare (maior qualidade do produto, preços mais baixos, etc.). Ora, assim sendo, cabe perguntar: será congruente com a ratio das leis antitrust que estas sejam utilizadas, não para promover o consumer welfare, não para acautelar os interesses do público/consumidor, mas em benefício do jogador/trabalhador, no seu combate por maior liberdade, contratual e de trabalho? Poderão as leis de defesa da concorrência funcionar como instrumento para remediar violações de direitos humanos ou para promover os interesses dos trabalhadores? Poderão aquelas leis ser utilizadas para combater práticas anticoncorrenciais cujos efeitos se cinjam ao mercado de trabalho?

Com a presente decisão, a AdC responde afirmativamente a estas questões, sublinhando que o referido acordo de não contratação entre empresas concorrentes, com a chancela da Liga, priva os jogadores de mobilidade laboral. Esta decisão remete-nos para a clássica lição de Milton Friedman, segundo a qual um trabalhador é protegido do seu patrão graças à existência de outros patrões, para quem pode ir trabalhar. Friedman afirmava, não sem alguma razão, que os patrões que protegem o empregado são os que gostariam de o contratar. Pelo que, concluía, a verdadeira proteção do trabalhador residia na competição pelos serviços prestados, e não tanto na intervenção estadual ou no movimento sindical.

No que aos desportistas profissionais diz respeito, não há dúvida que laboralização e liberalização têm andado a par. O que os atletas querem, acima de tudo, na Europa como nos EUA, é que lhes seja reconhecido o direito de “freely market their services”, é que exista “competitive bidding for their services”. E, nisto, o direito do trabalho e o direito da concorrência dão as mãos. O enfoque é distinto, claro: o direito da concorrência olha para as atuações concertadas das empresas, que se abstêm de contratar os trabalhadores umas das outras e, deste modo, renunciam à concorrência pela aquisição de recursos humanos; o direito do trabalho centra-se na pessoa do trabalhador, cuja liberdade de exercer a respetiva profissão é cerceada. Nada de estranho há nisto. O Direito é um só. Os dois ramos do ordenamento, neste caso, convergem, de ângulos diferentes, para um objetivo comum, para banir as restrições injustificadas à livre concorrência e à liberdade de trabalho.

O que é estranho é que tais práticas anticoncorrenciais tenham sido difundidas e publicitadas como o foram. Normalmente, quem viola a lei fá-lo de forma discreta ou clandestina. Tenta que ninguém saiba, que ninguém detete, que ninguém se aperceba, que ninguém descubra, que ninguém, sequer, desconfie. Mas nada disso, verdade seja dita, aconteceu aqui: os clubes divulgaram e publicitaram amplamente o conteúdo das suas práticas concertadas ilegais. Quiçá, mais uma especificidade desportiva… A AdC, com tamanho ruído, terá sido obrigada a intervir. Fez bem.