A pandemia, os acordos interclubes e a liberdade de trabalho dos jogadores de futebol


A notícia correu nos meios de comunicação social e a consulta da página web da Liga confirma-a, oficialmente. Datada de 7 de abril e intitulada “Presidentes de clubes da Liga NOS estabelecem regra para rescisões unilaterais”, a notícia tem o seguinte conteúdo: «Os Presidentes dos clubes da Liga NOS, reunidos hoje em videoconferência, com o Presidente da Liga Portugal, Pedro Proença, além de uma análise à situação atual, deliberaram, e decidiram anunciar publicamente a decisão, que nenhum clube irá contratar um jogador que rescinda unilateralmente o seu contrato de trabalho, invocando questões provocadas em consequência da pandemia do Covid-19 ou de quaisquer decisões excecionais decorrentes da mesma, nomeadamente da extensão da época desportiva».

Por sua vez, logo no dia seguinte, a 8 de abril, surge nova notícia, intitulada “Presidentes de clubes da LigaPro unem-se na regra de rescisão unilateral”, do seguinte teor: «Os Presidentes dos clubes da LigaPro decidiram em conjunto, e após reunião com o Presidente da Liga Portugal, Pedro Proença, que nenhum dos emblemas deste escalão avança para a contratação de um jogador que rescinda unilateralmente o seu contrato de trabalho, invocando questões provocadas pela pandemia do Covid-19 ou de quaisquer decisões excecionais decorrentes da mesma, nomeadamente da extensão da época desportiva. Esta é, aliás, uma medida que foi tomada e anunciada, na véspera, pelos Presidentes de clubes da Liga NOS, aos quais agora se juntam os responsáveis da LigaPro. Unidos para passar este momento de dificuldade e com voz única, os Presidentes dos clubes do escalão secundário, sempre em articulação com a Liga Portugal, terão capacidade de superar este momento tão difícil para toda a indústria. Os responsáveis acreditam que, mais do que nunca, os problemas e desafios com que se depararam são comuns e é imperativo que a resposta seja, também ela, conjunta».

A notícia vale o que vale, assim como estes acordos entre presidentes de clubes, com a chancela do Presidente da Liga. Pela minha parte, apenas gostaria de sublinhar que o valor jurídico destes acordos é zero. O jogador que rescinda unilateralmente o seu contrato poderá fazê-lo com ou sem justa causa. Se o fizer sem justa causa, o jogador terá de indemnizar o clube lesado pelos danos, por todos os danos, que a rutura prematura do vínculo lhe tiver causado. Se esse jogador for contratado por um novo clube, a lei presume que o novo clube interveio, direta ou indiretamente, na cessação do anterior contrato, passando então o novo clube, enquanto “terceiro cúmplice”, a responder solidariamente pelo pagamento da indemnização devida pela rutura contratual desencadeada pelo jogador. Tudo isto consta da lei que, entre nós, estabelece o regime jurídico do contrato de trabalho desportivo, a Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, mais concretamente nos artigos 23.º, 24.º e 26.º desse diploma.

Em todo o caso, convém não esquecer que ao contrato de trabalho celebrado entre os clubes de futebol profissional e os seus jogadores se aplica também, subsidiariamente, o Código do Trabalho. E o nosso Código do Trabalho dispõe de uma norma destinada a salvaguardar a liberdade de trabalho dos trabalhadores. É o art. 138.º, o qual, sob a epígrafe “limitação da liberdade de trabalho”, estabelece, sem tergiversações, ser nulo qualquer acordo entre empregadores que proíba a admissão de trabalhador que a eles preste ou tenha prestado trabalho.

Os patrões do futebol não podem, como quaisquer outros patrões, elaborar uma espécie de “lista negra” de jogadores que, por terem rescindido o contrato de trabalho (note-se: apenas por terem rescindido, sem ou mesmo com justa causa), serão ostracizados pelos restantes. Estes são acordos limitativos da concorrência entre os clubes, típicos de um cartel, que sacrificam um direito fundamental dos trabalhadores, de qualquer trabalhador, que é a liberdade de trabalho – e cujo valor jurídico é, portanto, equivalente a zero.

Não deixa, ainda assim, de impressionar a tranquilidade com que os patrões do futebol anunciam e publicitam os seus acordos, mesmo aqueles cujo conteúdo é rotundamente ilegal. Falta de consciência da ilicitude? Talvez. Mas também, creio, alguma falta de pudor.