Ou renovas... ou hibernas!


1 - Se é indiscutível que qualquer trabalhador pode ter sérios interesses, de ordem material e moral, no efectivo exercício da sua actividade profissional, é outrossim indesmentível que tais interesses são particularmente ostensivos quando esse trabalhador é um jogador de futebol. Com efeito, uma situação de inactividade prolongada mostra-se aqui, numa profissão concentrada (isto é, de curta duração e de forte intensidade) como esta, especialmente lesiva do trabalhador. A prática desportiva profissional dos nossos dias requer um elevado apuro físico, um “estar em forma” só alcançável através de constantes doses de preparação e treino. Mais: o futebolista precisa de se exibir, necessita de competir, sob pena de cair no esquecimento e de ver desvalorizada a sua cotação no respectivo mercado de trabalho. O futebolista é o principal intérprete de um espectáculo que é alimentado pelo público ― e o público, esse, ama quem vê. Longe da vista, longe do coração, eis um provérbio que aqui se mostra pertinente e, o que é pior, facilmente convertível em longe da vista, baixa de cotação...

O futebolista carece, pois, de exercer a sua actividade profissional, precisa de treinar e de competir, necessita de se preparar e de exibir os seus dotes. Esta é, aliás, uma dupla quase inseparável: competir sem treinar é pouco menos que impensável, treinar sem competir é frustrante e mesmo algo atrofiante. Com efeito, o treino desportivo, por mais intenso e qualificado que seja, nunca consegue substituir a competição. Treinar não é competir e o jogador afastado da competição durante algum tempo, ainda que entretanto tenha treinado com afinco, acusará falta de ritmo quando chamado de novo a competir.

 

2 - É sabido, contudo, que o futebolista não goza do direito de participar na competição desportiva. Isto é assim e, diga-se em abono da verdade, não parece que possa deixar de o ser: a competição tem regras que limitam o número de jogadores a utilizar (no futebol, em cada jogo, 11+3) e os clubes que disputam tal competição necessitam de possuir um quadro de atletas relativamente alargado (20-30, no futebol) em ordem a dar resposta às numerosas vicissitudes ligadas à prática desportiva (lesões, sanções, quebras de forma, etc.), pelo que, inevitavelmente, nem todos os jogadores poderão tomar parte na competição (alguns poderão mesmo nunca o fazer ao longo de toda uma época desportiva). O jogador só participará na competição, por conseguinte, se e quando o clube, através dos competentes técnicos, o determinar. Ou seja, e em termos simples, o futebolista tem o direito de treinar mas não o de jogar, tem o direito de se preparar mas não o de competir, tem o direito de ser adestrado mas não o de ser utilizado.

Sucede, porém, que, como se disse, o treino, sendo indispensável, é insuficiente. A actividade desportiva que o jogador se compromete a prestar quando celebra o contrato consiste, basicamente, na disputa das correspondentes competições desportivas. Esse é o núcleo central da sua actividade, essa é a razão pela qual o clube normalmente o contrata e a razão pela qual ele chega a acordo com esse clube: actuar ao seu serviço, representá-lo aquando do momento mágico da competição. Tudo o resto (maxime os treinos) tem carácter propedêutico, tem natureza preparatória ou instrumental.

 

3 - Os critérios técnico-desportivos atinentes à constituição das equipas prevalecem, porém, sobre a tutela da profissionalidade do jogador, usufruindo o clube de uma quase irrestrita liberdade de utilizar ou não os serviços daquele na competição, conforme o que entenda mais conveniente. Mas atenção! Isto já assim não será caso se demonstre que a não utilização do jogador na competição resulta de factores extradesportivos, sendo movida pela intenção de o punir ou de o desgastar psicologicamente ― procurando coagi-lo, por exemplo, à renovação do vínculo contratual com o clube, na mira de evitar que o prazo contratual expire e que, em consequência, o jogador possa vir a transferir-se “a custo zero”. Aqui estaremos já, sem dúvida, perante condutas ilegítimas e abusivas do clube, atentatórias da boa-fé contratual. Ora, a prática vem demonstrando que, muitas vezes, estas propostas patronais de renovação contratual vêm acompanhadas da ameaça, nem sempre velada, de excluir o jogador da competição desportiva, caso ele não aceite a pretendida renovação...

 

4 - Problemas igualmente delicados surgem, nesta matéria, em torno das chamadas “equipas B”, figura que vai fazendo curso no nosso futebol. Com efeito, ao abrigo da pertinente regulamentação federativa, clubes desportivos há que possuem duas equipas: a “equipa A”, constituída pelos melhores jogadores e disputando o campeonato principal; e a “equipa B”, maioritariamente integrada por jovens jogadores e disputando o campeonato secundário. Nestes casos, a questão consiste em saber se aos jogadores assiste algum direito de integrar a “equipa A” do clube ou se, pelo contrário, este conserva inteira liberdade para, de acordo com os critérios técnico-desportivos que reputar apropriados, distribuir os jogadores como achar conveniente pelas duas equipas.

Este último é, em princípio, o entendimento mais acertado. Na verdade, se um clube possuir duas equipas e tiver 50 atletas contratados, uma das prerrogativas inerentes ao seu poder de direcção consistirá, precisamente, em determinar que jogadores farão parte da “equipa A” e quais os que serão relegados para a “equipa B”. Mas isto, note-se, em princípio, pois a prática vem demonstrando que este também constitui um terreno privilegiado para actuações abusivas por parte dos clubes, contrárias à boa-fé contratual: é o que sucede quando a decisão de afectar determinado jogador à “equipa B” não se baseia em razões técnico-desportivas, traduzindo-se antes numa medida visando constrangê-lo a renovar o seu contrato por mais alguns anos.

 

5 - Entendamo-nos. Clube e jogador celebram um contrato de trabalho a termo, a prazo, devendo ambos cumpri-lo ponto por ponto, na íntegra, em obediência ao conhecido princípio pacta sunt servanda. Sobre o jogador não recai qualquer obrigação de renovar o vínculo contratual com o clube. O clube, por seu turno, não tem qualquer direito de exigir do jogador essa renovação. O compromisso entre as partes, por força da lei, é um compromisso temporalmente parametrizado. E se o clube, procurando forçar o jogador a dar a sua anuência à renovação, utilizar expedientes tais como os de impedir o jogador de participar na competição ou relegá-lo para a “equipa B”, então o clube estará a incorrer em assédio moral, previsto e proibido no art. 24.º do Código do Trabalho. Ora, confrontado com esta prática de assédio, é evidente que o jogador tem todo o direito de reagir, inclusive através da resolução do respectivo contrato de trabalho desportivo, com justa causa.

“Ou renovas ou hibernas!” Será? Acredito que não, pois, contanto que a motivação decisória do clube seja demonstrável em juízo, o jogador bem poderá retorquir: “Ou cumprem... ou, obviamente, demito-me!”.