A propósito de Sophia


Se não laboro em erro, o desporto, como tema literário, foi tratado, pela vez primeira, pelo estro vibrante de Píndaro. Os Jogos dominavam a vida da Grécia clássica e ele deixou-se embriagar pelos feitos atléticos dos cam­peões. Durante os Jogos, desaguava em Olímpia tudo o que na Grécia havia de mais artístico, filosófico e desportivo.

Os poetas declamavam o que lhes saía da alma, os sofistas dialogavam com auditórios eruditos, os artistas maravilhavam o público com as suas obras, e os atletas competiam entre si. Enfim, arte, filosofia e desporto, num conúbio que muito enriqueceu a literatura grega.

Na Literatura Portuguesa, também é significativa a pre­sença de escritores a evidenciarem uma simpatia encorajante pela prática desportiva. Desde o D. João I do Livro da Montaria e o D. Duarte da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela (o primeiro tratado de equitação, que se escreveu na Europa) até aos nossos dias. Distingo o Eça de Queirós, o Ramalho Ortigão e o Manuel Alegre.

Sim, eu sei: e o Ricardo Reis? E o António Botto? E o Ruy Belo (que me leu, nas instalações da Faculdade de Letras de Lisboa, uma admirável prosa poética sobre o basquetebol)? E o Baptista-Bastos? E o Urbano Tavares Rodrigues? E o Romeu Correia? E o Ruben A.? E o Gonçalo M. Tavares?... E muitos. Mas eu explico, as razões da minha escolha no Eça, no Ramalho e no Manuel Alegre.

N'Os Maias, o Eça de Queirós, através de Afonso da Maia, mostra conhecer os grandes sistemas da Educação Física, no século XIX, ou seja, o desporto britânico, a ginástica de Ling e a de Amorós e o turnen alemão. O Ramalho n'As Farpas, com a latitude e a plasticidade do seu espírito cultivado, escreveu: “A fisiologia moderna tem mostrado que a saúde não é mais que o justo e perfeito equilíbrio das diferentes forças inerentes ao nosso organismo. A higiene tem provado, com muitas obser­vações e fundada nas mais repetidas experiências, que o exercício regular e metódico de todos os nossos membros e de todos os nossos órgãos é o único meio de manter o equilíbrio que acima nos referimos. A sistematização desse exercício regular e metódico chama-se a ginástica”.

Há um cartesianismo evidente, na prosa do Eça e do Ramalho. “Eu sou meu corpo” da fenomeno­logia não se vislumbrava ainda. Em conversa com o tio de Manuel Alegre, o embaixador Mário Duarte, que foi o guarda-redes do Belenenses, um gentle­man e por isso um sportsman, pude enxergar que o autor do romance Alma e de poesias inesquecíveis ao Bentes, ao Figo e ao Eusébio foi internacional de natação e que nasceu de uma família onde o ideário olímpico encontrou o mais fundo eco.

Manuel Alegre, se bem entendi Mário Duarte, é um discípulo de Coubertin, sem perda da sua inconfundível personalidade de democrata e dos seus ideais socialistas. Ele é um poeta, um escritor onde o desporto tem lugar destacado, talvez único, na História da Literatura Portuguesa...

José Peseiro, meu antigo aluno no ISEF, há 34 anos, confessou, em seminário de que fui um dos docentes: “Só agora, como treinador de futebol, é que en­tendi o que nos disse numa aula, depois de nos ter lido um poema da Sophia de Mello Breyner Andresen, ao aconselhar-nos a que lêssemos diariamente um texto de um grande nome da nossa literatura, para melhor entendermos o desporto”.

É verdade, há 34 anos, li aos meus alunos um poema de Sophia que muito me sensibiliza, a “Meditação do Duque de Ganda sobre a morte de Isabel de Portugal” do livro Mar Novo (Guimarães Editores, Lisboa, 1958):

"Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
em o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do seu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer”.

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