A pessoa certa para um lugar incerto (2)


Para quem olhou com vista desatenta para o meu último artigo, nesta revista (colaboração que muito me desvanece) terá apressadamente concluído que eu dispenso a teoria, na profissão de treinador de futebol - teoria absolutamente indispensável, em qualquer acto cognoscitivo de feição tipicamente científica. Com efeito, quando repito nas minhas aulas "o facto da vossa licenciatura em Desporto não vos garante que podereis ser um dia treinadores de mais sucesso do que alguns treinadores, sem habilitações universitárias" - não digo que, neste caso, como noutros, o saber universitário seja dispensável. O que é meu dever salientar é que, na dialéctica teoria-prática, esta tem a primazia, ou seja, só com teoria não há conhecimento. Vou mais longe: quem não pratica não sabe! Por isso, a cultura implica a aliança do saber e da vida. Quem não viveu o futebol, nada sabe de futebol, por mais que o teorize. Assim, se o conhecimento universitário permite que se perspective e antecipe uma nova prática do futebol, importa, o mais depressa possível, que os professores universitários dos cursos de Desporto procurem as "causas das causas" dos fracassos de muitos dos seus ex-alunos diante dos êxitos espectaculares de treinadores, alguns deles só com a Instrução Primária. O que se passa, se também a prática, por si só, não é um conhecimento absoluto?

Já os "mestres da suspeita" (Marx, Nietzsche e Freud) deitaram por terra a mania de uma Razão sobranceira à história, à infra-estrutura económica, à libido, às emoções, à vontade de poder. Fundamentados numa Razão imperial, cresceram e floresceram os fascismos de todos os matizes, à direita e à esquerda. O futebol, como motricidade, é um movimento intencional da complexidade humana, onde teoria e prática inevitavelmente se articulam. Mas, como movimento intencional, ou motricidade (o movimento, sem intencionalidade, não é motricidade), a teorização do futebol, para decisivamente ajudar à transformação do "desporto-rei", necessita da mediação prática adequada. Quem só pensa o futebol e não o vive não transforma verdadeiramente o futebol. Para transformar, há que sair do âmbito da teoria pura e criar uma unidade dialéctica fundamental entre a teoria e a prática. Ora, é isto o que por vezes não acontece nalguns cursos universitários de Desporto. Porque, se tal acontecesse, depressa os alunos concluiriam que a usual placidez do estudo livresco é insuficiente para entender-se a incerteza que o futebol é e o mundo convulso que o rodeia e condiciona. O que fazer-se? Na esteira de Boaventura de Sousa Santos, fazer o segundo corte epistemológico, ou seja, romper com um saber pesporrente, prosapioso e dialogar com os "práticos" que apresentem um currículo de êxitos inolvidáveis. Porque são estes, os vencedores, os que, para o grande público, têm razão. O José Mourinho, o Manuel Jesualdo Ferreira, o Carlos Queiroz, o José Peseiro, o Carlos Carvalhal e outros não são conhecidos pela sua licenciatura, mas pelos resultados obtidos, na alta competição. O conhecimento científico, que é teoria, nasce na prática e nela termina. Portanto, definir é teorizar, porque antes se praticou e se pretende praticar melhor! Não há ciência, sem a síntese teoria-prática, porque é nesta síntese que a vida acontece. Conhecer é viver! A revolução copernicana, no âmbito do conhecimento, é esta e não outra: Conhecer, que é construção subjectiva da realidade, é uma vivência e não a simples observação de factos que nos são exteriores.

Nos cursos de treinadores, se bem entendo o que me dizem, as várias disciplinas não obedecem ao mesmo paradigma, ou seja, são psicologia, sociologia, pedagogia, etc., etc., mas não são futebol. E depois vivendo da falsa racionalidade de quem não estuda o futebol como reflexo da condição humana. Para preparar o futebolista, é preciso simultaneamente preparar o Homem. Para fazer grupo, para reconhecer os erros, para respeitar e respeitar-se, para enfrentar as incertezas em que o jogo é pródigo - não basta ser tecnicamente habilidoso. Escreve Edgar Morin n'Os Sete Saberes para a Educação do Futuro: "a educação do futuro deverá ser um ensino (...) centrado na condição humana" (Instituto Piaget, p. 51). Do futebol, do desporto em geral, deverá dizer-se o mesmo. O Oráculo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo" também se aplica ao futebol.

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