A Palavra Nova


O futebol português parece viver só de tradições. Só sabe pensar o Passado. E quando anuncia medidas novas - as soluções não passam de aflições de ocasião, de palavras velhas como chá requentado, de promessas que jamais se cumprirão. Muitos dirigentes, nas raríssimas vezes que parecem pensar, vestem-se de D. Sebastião e têm todos o seu Alcácer-Quibir. De facto, de tudo o que fazem nasce o "reino cadaveroso", ou seja, equipas incapazes de vencer; dirigentes especializados no desnecessário, no imprudente, no insensato; massas associativas dementes, paralíticas da vontade e de menoridade mental. Quantas vezes o futebol português se perdeu, no pântano da demagogia? Vivemos o imperialismo da políticaespectáculo, esse imenso aluvião de ilusões que termina sempre da mesma forma: equipas de futebol, sem força interna nem representatividade externa. O poder que estes dirigentes representam não pode revolucionar, porque o que fazem não passa de medíocre encenação, apresentada como revolução original. É preciso compreender que jamais haverá mudança, ou revolução, sem prévia alteração das ideias. Também no futebol, sem revolução mental, nada se consegue. Como no tempo de António Sérgio, temos o "primeiro homem", emotivo e descontrolado, e o "segundo homem", dogmático e pesporrente. No futebol português, dificilmente se encontra o "terceiro homem" livre e problemático, informado e dialogante. Que futebol é este, onde as suas elites tocam as raias do obscurantismo?

Há necessidade de intelectuais no futebol - mas intelectuais que saibam o que é o futebol! Há uma demissão histórica de algumas pessoas que amam o futebol - demissão que se torna mais gritante à medida que progride a corrente estupidificante da verborreia de alguns dirigentes. Já há muitos anos, Jacinto do Prado Coelho afirmava na Academia das Ciências de Lisboa: "Assistimos, nos nossos dias, ao congestionamento e à degradação da palavra, pelo uso e abuso terrorista da linguagem. A palavra desligada da esfera intelectual torna-se arma de arremesso, como a pedra (...). O imperialismo da palavra, eis uma forma nova de tirania, amplificada pelos meios de comunicação social". O discurso deste professor de Literatura, já falecido, aplicase ao futebol português de hoje. É que frente ao "maremotum" de analfabetismo desportivo, é preciso que os intelectuais (que amam o futebol, repito) denunciem a crise, mostrem a malignidade dos seus efeitos, promovam o uso da palavra competente e crítica, honesta e limpa. Ortega y Gasset insistiu na responsabilidade do intelectual em ser objectivo e atribuir todo o valor ao real, respeitando-lhe a complexidade. Esta responsabilidade decorre da sua missão específica que consiste (neste caso), em libertar o futebol de todos os factores que lhe sejam essencialmente estranhos... como alguns dirigentes o são!

A política do essencial, ou melhor, a edificação da verdade exige a prévia demissão dos dirigentes que empregam, unicamente, a palavra de agitação e propaganda, que tanto polui o espaço informativo do nosso futebol. Não foi por acaso que Sócrates travou a batalha da linguagem, sobre o sentido da palavra "virtude", isto é, do que pode promover e desenvolver o ser humano. É imprescindível que o nosso futebol assuma os riscos de uma palavra nova. Destruir a palavra competente e honesta pela tagarelice arruaceira, pelo ouropel da propaganda, pelo bizantinismo dos temas é trair o ser humano e desprezálo. Sartre fez dizer a Orestes estas palavras dirigidas a Júpiter: "A vida humana começa do outro lado do desespero". Há clubes de futebol que, de certo, já se aproximam do desespero, mas só a esperança pode enfrentá-lo.

E a esperança só a palavra nova pode anunciá-la: nova, porque só ela permite que se repense e se refaça o futebol - porque só ela permite um "virar de página". Estamos no momento em que o futebol se deve pôr em causa, para melhor se poder definir. Em todos os níveis, mas sobretudo ao nível do dirigismo...

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