“Quero continuar a formar-me, seja em pós-graduações ou até um mestrado”


Pauleta, capitã do Benfica, tem uma licenciatura em química, mas não quer ficar por aqui.

Chegaste a Portugal com 19 anos, para jogar no Braga. Apesar de te teres mudado para o “país vizinho”, sentiste um choque muito grande quando cá chegaste?
Sim, foi uma mudança bastante grande. Eu tinha 19 anos, feitos no verão, e foi uma grande mudança para mim. Nunca tinha saído de casa, tinha vivido sempre com os meus pais, então, só esse fator já foi uma mudança. Depois, ir para outro país, mesmo que seja perto, com outra cultura e outro idioma, foi uma mudança bastante grande. Por outro lado, vim com mais quatro colegas da minha equipa e isso facilitou um bocado as coisas. Sim, foi difícil, mas acho que me consegui adaptar bem a Portugal, ao futebol e até ao idioma.

Em relação a Espanha, sentes que os países estão nivelados no que toca à qualidade e aposta no futebol feminino?
Não estão nivelados, mas acho que Portugal está num bom caminho. A verdade é que Espanha começou muito antes esta aposta no feminino e é por isso que há esta diferença. A Espanha está mais avançada, mas a qualidade em Portugal está a chegar perto. Nós, jogadoras, federações, clubes e sindicatos estamos a num bom caminho para chegar a esse patamar.

A verdade é que foste por cá ficando. Sentes que te adaptaste facilmente ao futebol português?
Sim. Gostei muito de cá estar e do futebol português, desde o meu primeiro ano. Acho que foi por isso que fiquei cá. Se não estivesse confortável já teria saído. Gostei do pessoal, trataram-me sempre muito bem e, portanto, fiquei cá e posso dizer que foi a escolha certa.

Esta é a tua sexta época e já somas 6 troféus. Esperavas ganhar tanto neste período de tempo?
Por um lado, não, por outro sim. Cheguei ao Braga e o projeto era claramente para ganhar tudo. Infelizmente, não ganhámos nada. Acho que é muito bom estar cá e ganhar e desde que cheguei ao Benfica posso dizer que ganhei muita coisa. Agora só quero continuar a trabalhar para poder continuar a ganhar.

Para além de ganhares dentro de campo, também o fazes fora dele. Com uma licenciatura tirada, és um exemplo para muitos. Deixar os estudos de parte nunca foi opção?
Não. Nunca. Comecei a licenciatura quando ainda jogava em Espanha, na Segunda Divisão, num futebol amador em que treinávamos à noite dois ou três dias por semana. Quando chegou a proposta do Braga foi uma realidade completamente diferente da que eu vivia. Era futebol profissional, com todas as condições e tinha de dar tudo ao futebol, mas quis continuar com esse “plano B”. Em Braga não consegui fazer a transferência da matrícula, então tive de continuar à distância, o que dificultou um bocado as coisas. Só consegui fazer quatro cadeiras. Quando vim para o Benfica uma das coisas que eu queria era fazer a transferência da matrícula e terminar o curso. Consegui estudar cá e também acabar o curso.

Química não é um curso assim tão comum quanto isso, especialmente no meio do futebol. Por isso pergunto: Porquê química?
A verdade é que quando escolhi química não tinha bem a certeza do que queria fazer. Acabei o secundário no ramo das ciências, mas não sabia exatamente o que queria. Fiz os exames nacionais e só depois de ter as notas é que decidi o que fazer. Estive a ver os cursos, os planos, as saídas profissionais e achei que a química, dentro das ciências, que era o que eu queria, era uma das mais abrangentes. Tinha muitas especialidades, muitas coisas para onde ir, e por isso escolhi ir. No primeiro ano do curso fiquei realmente apaixonada e por isso decidi continuar.

“Ter um plano B é mesmo importante, não só para quando acabarmos a carreira, mas para o caso de acontecer alguma coisa.”

É também algo que te vês a fazer depois de terminares a carreira?
Sim. Espero ficar cá muitos anos, a jogar à bola, mas sim. Quero continuar a formar-me e, quando acabar no futebol, ter alguma relação com o que estudei, porque de facto é uma área da qual gosto muito.

Sempre conseguiste conciliar o futebol com os estudos?
Foi complicado no Braga. Agora, com a pandemia o estudar online é mais fácil, porque as faculdades e os cursos já dão muito material para estudar. Naquela altura eu não tinha material nenhum, só mesmo os powerpoints dos professores e algumas coisas que os meus colegas me enviavam. Estava em Braga, sozinha, quase não ia a nenhuma aula, só lá ia fazer os testes. Num curso como química é um bocado complicado. Consegui fazer algumas cadeiras, o que foi bom. Foi mais complicado que aqui em Lisboa. Aqui conseguia ir a algumas aulas, ainda que não a todas, e isso facilitava mais as coisas.

Pensas em continuar ou agora que já és licenciada o foco vai ser apenas o futebol?
Tive a oportunidade de começar o mestrado, mas disse que não porque o ano passado foi bastante puxado com o projeto de final de curso. Decidi não começar o mestrado, mas, como eu digo sempre, não consigo estar quieta e comecei uma pós-graduação de quatro meses que é um bocado mais relaxada. Quero continuar a formar-me, seja em pós-graduações ou até, daqui a alguns anos, um mestrado, mas também preciso de um bocado de descanso. A vida do futebol com os estudos é um bocado puxada.

E a pós-graduação é em quê?
Numa área um bocado diferente. Programação Científica em Python, uma linguagem específica da programação. É diferente do que eu estudei na licenciatura, onde só tive uma cadeira de programação. Queria formar-me um bocado mais nessa área, encontrei esta pós-graduação e estou a gostar.

Acreditas que as jogadoras dão uma maior importância a um plano B do que os jogadores?
Acho que sim, mas nós jogadoras também temos de ser realistas. Um jogador homem que esteja no futebol profissional durante cinco anos ganha mesmo muito dinheiro. Nós já estamos a ganhar dinheiro, sim, mas nunca vai chegar perto daqueles valores. Então, temos noção de que quando acabarmos a carreira não vamos ter tanto dinheiro quanto eles e é muito por aí. Tens de ter noção do que estás a ganhar e do que vai dar para viver mais à frente.

A instabilidade e a dificuldade em muitas vezes atingir um nível profissional pode ser uma das principais causas?
Sim. Sempre que as pessoas me perguntam isso eu digo o mesmo. Agora tenho contrato com o meu clube, mas, e espero que não, posso acabar o contrato e ficar sem clube ou não ter outra oportunidade de continuar como profissional. Temos de ter todas essa noção. No futebol, hoje estás lá em cima e amanhã já não. Nós já somos adultas e precisamos de ganhar o nosso dinheiro, ter a nossa estabilidade, portanto ter um plano B é mesmo importante, não só para quando acabarmos a carreira, mas para o caso de acontecer alguma coisa.

“O meu conselho é nunca perder o foco em nada, seja no futebol ou nos estudos. E, o mais importante: quando as coisas estão a correr bem, se perderes o foco, vão começar a correr mal.”

Da parte dos clubes, sentes que há apoios e incentivos para que as atletas prossigam os seus estudos?
Sim, sem dúvida. Cada vez mais os clubes e as direções estão a perceber isso, a facilitar muito mais as coisas. Claro que, e eu digo sempre isso, primeiro sou atleta e só depois estudante, mas eles também percebem que por vezes tenho compromissos diferentes e outras coisas para fazer para além dos treinos e dos estágios. De facto, facilitam muito as coisas. Começo a aperceber-me também que cada vez há mais atletas a começar a estudar e a formar-se. É de valorizar que os clubes estejam, cada vez mais, a facilitar essas coisas porque se não fosse assim, não o conseguiríamos fazer.

O Benfica tem jogadoras muito jovens, com 17 e 18 anos. Gostas de pensar que és um exemplo para elas?
Sim, gosto de pensar isso e também de falar com elas. Acho que, apesar de não ser muito mais velha, vivi o outro lado do futebol, vivi aquela parte de treinar à noite, de não receber, de pagar para jogar e elas chegam a uma equipa A ou mesmo B e percebem que as coisas são mais fáceis, não são tão complicadas. Então, faz parte do nosso trabalho explicar-lhes que nem tudo é fácil, nem tudo vai ser assim e é importante que elas percebam que é preciso lutar muito para chegar a estes patamares e que do nada podes perder esta oportunidade de ser profissional.

A jogar enquanto profissionais, a jogar na Champions, é fácil as jogadoras se deslumbrarem?
Sim, acho que sim. É normal que aconteça, que uma jovem que chegue ao Benfica e esteja a jogar contra um Lyon ou um Bayern pense que já “está tudo feito”. Temos que tentar fazê-las perceber que não é bem assim, que podemos ainda crescer muito mais, fazer com que o Benfica chegue muito mais acima. Não é pensar que chegamos aqui e já não precisamos de trabalhar mais ou de estudar porque “estou no mais alto nível”. É preciso ter os pés bem assentes na terra.

24 anos, licenciada em Química, atleta do Benfica e já com jogos internacionais, que conselhos deixas a outras jovens jogadoras que ainda estejam a lutar para chegarem ao teu patamar?
O meu conselho é nunca perder o foco em nada, seja no futebol ou nos estudos. E, o mais importante: quando as coisas estão a correr bem, se perderes o foco, vão começar a correr mal. E, se correrem mal, se não tiveres o foco, nunca vão correr bem. É manter o foco e lutar sempre pelos teus sonhos.

Depois de tanto tempo em Portugal, é um objetivo teu chegar à Seleção Portuguesa?
Posso dizer que sim. Já tenho falado sobre isso e não o quero esconder. Quero muito jogar pela seleção portuguesa. Tive a oportunidade de jogar profissionalmente em Portugal, foram clubes portugueses que me deram essa oportunidade, foi a Federação portuguesa que permitiu tudo isto e foram todos eles que me deram as condições para ser o que sou hoje. Portanto, a melhor forma de mostrar gratidão por isso é poder representar a seleção e mostrar em campo o quão grata estou.

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