Opinião: "Diarra: um novo Bosman?"

Doutor João Leal Amado, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, analisa a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia.
No habitual espaço de reflexão no site do Sindicato dos Jogadores, o doutor João Leal Amado, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e um dos maiores especialistas em direito laboral e desportivo do país, aborda a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, relativamente ao caso Diarra, com impacto no sistema de transferências da FIFA:
"Quase 30 anos volvidos sobre o famoso “Acórdão Bosman”, o tema da mobilidade profissional dos jogadores de futebol, da sua liberdade de trabalho e de circulação no espaço europeu, assim como as questões relativas à liberdade de concorrência neste setor, continuam na ordem do dia. No passado dia 4 de outubro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um importante aresto – o Acórdão relativo ao chamado “caso Diarra”, Processo C-650/22 –, debruçando-se sobre a (in)compatibilidade de diversas disposições constantes do Regulamento da FIFA relativo ao Estatuto e à Transferência de Jogadores (RETJ) com princípios nucleares do Direito Europeu, constantes do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia, máxime com o princípio da livre circulação dos trabalhadores na União, consagrado no artigo 45.º, e com o princípio da livre concorrência no mercado interno, vertido no artigo 101.º do mesmo Tratado.
Em síntese, o “Acórdão Diarra” analisa diversas disposições constantes do RETJ, seja as relativas ao cálculo da indemnização devida pelo jogador ao clube, em caso de rutura contratual sem justa causa promovida por aquele, seja as que estabelecem a responsabilidade solidária do novo clube pelo pagamento de tal indemnização ao anterior clube do jogador, seja as que preveem a aplicação de sanções desportivas ao seu novo clube, que se presume ter aliciado o jogador a romper prematuramente o anterior contrato de trabalho desportivo, seja as que impedem o jogador de ser inscrito por um novo clube, obstando à emissão do necessário Certificado Internacional de Transferência (CIT), enquanto existir litígio entre esse jogador e o seu anterior clube, em relação à regularidade ou não da extinção do correspondente vínculo contratual.
Conforme se lê no §139 do aresto, «com efeito, a menos que obtenha o consentimento do anterior clube no âmbito de uma transferência negociada, o simples facto de contratar esse jogador expõe o novo clube ao risco de ser considerado solidária e conjuntamente responsável pelo pagamento de uma indemnização de um montante potencialmente muito elevado. Além disso, o montante desta indemnização apresenta um caráter altamente imprevisível para o novo clube, tendo em conta a natureza dos critérios com base nos quais é calculado. Acresce que, enquanto estiver pendente um litígio entre o jogador em causa e o seu anterior clube a respeito da resolução antecipada do contrato de trabalho que os vinculava e, por conseguinte, enquanto o CIT correspondente a esta contratação não for emitido, este jogador não pode ser inscrito no novo clube nem participar, em sua representação, em competições que sejam da competência da FIFA, das entidades nacionais de futebol que delas são membros ou das confederações continentais, como a UEFA, reconhecidas por esta. Por último, a estes diferentes elementos acresce o risco de o novo clube ser condenado numa sanção desportiva, no caso de o recrutamento do jogador ocorrer durante o período protegido pelo contrato com o seu anterior clube e de esse novo clube não conseguir ilidir a presunção de que incitou à resolução do contrato que esse recrutamento acarreta. Como foi anteriormente referido, esta sanção desportiva consiste em proibir o novo clube em causa, de forma automática, de proceder à inscrição de qualquer novo jogador durante dois períodos de inscrição completos e consecutivos. A referida sanção desportiva impede‑o, na prática, de colocar em campo durante um jogo qualquer novo jogador que pretenda recrutar, situação que priva este recrutamento de um interesse prático real».
Sem surpresa para o autor destas linhas, o TJUE manifesta fortes reservas em relação a todas estas disposições do RETJ, cujo efeito conjugado é suscetível de violar tanto o princípio da liberdade de circulação dos trabalhadores como o princípio da livre concorrência entre os clubes no mercado de trabalho desportivo. Assim, o TJUE censura as normas do RETJ que guiam o tribunal na determinação do quantum indemnizatório devido pelo jogador ao clube, em caso de rutura contratual sem justa causa, normas que assentam em critérios muito discutíveis e que conferem ao julgador uma dose excessiva de discricionariedade (vide, em especial, os §§ 105 a 107 do Acórdão); o TJUE censura as normas que responsabilizam solidariamente o novo clube do jogador pelo pagamento de tal indemnização, sem atender às específicas circunstâncias de cada caso concreto (§ 108); o TJUE censura as normas que preveem a aplicação de fortes sanções desportivas ao novo clube do jogador, a menos que o clube comprove que não aliciou o jogador em causa (§ 109 a 111); e, last but not least, o TJUE censura as normas que proíbem a federação anterior, de forma geral e automática, de emitir um CIT se o anterior clube e o jogador estiverem em litígio relacionado com a falta de mútuo acordo quanto à resolução antecipada do contrato de trabalho, disposições cuja aplicação pode levar a que o jogador em causa seja impedido de exercer a sua atividade profissional e a que o novo clube seja impedido de o colocar em campo pelo simples facto de existir um litígio entre o referido jogador e o seu anterior clube relativo à rutura do contrato (§ 112 e 113).
O TJUE observa, a este propósito, que «as especificidades do futebol e as condições reais de funcionamento do mercado constituído, do ponto de vista económico, pela organização e comercialização das competições de futebol profissional interclubes não podem significar que deva ser restringida de modo generalizado, drástico e permanente, ou mesmo impedida, em todo o território da União qualquer possibilidade de os clubes participarem numa concorrência transfronteiriça, através do recrutamento unilateral de jogadores já inscritos por um clube estabelecido noutro Estado‑Membro ou de jogadores em relação aos quais se alega que o contrato de trabalho com esse clube foi resolvido sem justa causa. Sob pretexto de evitar práticas de recrutamento agressivas, estas regras correspondem, na realidade, a acordos de não contratação entre clubes que, em substância, conduzem à segmentação artificial dos mercados nacionais e locais, em benefício de todos os clubes. A este respeito, importa sublinhar que os mecanismos clássicos do direito dos contratos, como o direito de o clube receber uma indemnização em caso de resolução do contrato por um dos seus jogadores, eventualmente por instigação de outro clube, violando as cláusulas desse contrato, são suficientes para assegurar, por um lado, a permanência duradoura desse jogador no primeiro clube mencionado, em conformidade com as referidas cláusulas, e, por outro, a aplicação normal entre clubes das regras de mercado, que lhes permitem, no termo da duração normal do contrato, ou mais cedo, caso haja acordo financeiro entre clubes, proceder ao recrutamento do jogador em causa» (§ 145).
Se confrontarmos a argumentação expendida pelo TJUE no “caso Diarra” com o disposto, no plano nacional, pelo nosso regime jurídico do contrato de trabalho desportivo, constante da Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, que poderemos dizer? Em síntese, e se bem vemos, cremos que a nossa lei compara bem e não soçobra perante as críticas formuladas pelo TJUE em relação ao RETJ.
Assim, e por um lado, a nossa lei estabelece que o jogador, caso promova indevidamente a cessação do contrato, deverá indemnizar o clube, num montante que, em princípio, corresponderá às retribuições vincendas (aquelas que seriam devidas ao jogador se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo), mas que pode ir além disso, caso o clube lesado comprove que sofreu danos de montante mais elevado (artigo 24.º da lei). Não há aqui, portanto, a mescla de critérios, altamente discricionários, vertida no RETJ, que motivou a censura do TJUE, antes a lei remete, precisamente, para os «mecanismos clássicos do direito dos contratos», como sugere o TJUE.
Por outro lado, é certo que a nossa lei também responsabiliza solidariamente o novo clube, enquanto presumível “terceiro cúmplice”, pelo pagamento da referida indemnização ao anterior clube do jogador, nos termos do seu artigo 26.º. Note-se, porém, que, entre nós, esta responsabilidade solidária pode ser afastada, em função das circunstâncias do caso concreto, dado que a presunção de cumplicidade ou de aliciamento é ilidível, ao invés do previsto no RETJ da FIFA. E acresce que a nossa lei é totalmente omissa em matéria de eventuais sanções desportivas a aplicar ao novo clube do jogador – o que, claro, muda quase tudo, neste domínio.
Por último, a nossa lei mostra-se em total conformidade com a argumentação desenvolvida no aresto relativamente à possibilidade de bloqueio da atividade profissional do jogador, por via da não emissão do CIT por parte da federação desportiva do clube de origem do atleta, caso esteja pendente algum litígio entre as partes relativo à rutura do contrato, eventualmente sem justa causa, promovida pelo jogador. Como se lê no § 136 do Acórdão, «um jogador contra o qual o seu anterior clube intente uma ação junto da CRL para obter a condenação ao pagamento da indemnização em questão, com o fundamento alegado de que a resolução do contrato de trabalho entre ambos ocorreu sem justa causa, está automaticamente, por este simples facto e sob reserva de circunstâncias excecionais submetidas à apreciação exclusiva da FIFA, privado da possibilidade de obter a emissão do CIT que, em caso de transferência para um novo clube estabelecido num Estado‑Membro diferente daquele em que o seu anterior clube está estabelecido, é uma condição para a sua inscrição nesse novo clube e na entidade nacional de futebol em que este último é filiado. Consequentemente, nessa situação, esse jogador está privado de qualquer possibilidade de participar no futebol federado, como decorre do artigo 5.°, n.° 1, e do artigo 9.°, n.° 1, do RETJ».
Ora, nesta matéria, a nossa lei encontra-se em perfeita sintonia com a argumentação expendida no aresto, visto que o n.º 3 do seu artigo 27.º estabelece, de forma cristalina, que «o vínculo desportivo tem natureza acessória em relação ao vínculo contratual e extingue-se com a comunicação prevista no presente artigo [comunicação à entidade que procede ao registo obrigatório do contrato], podendo ser registado novo contrato, nos termos gerais». Contestada por muitos e naturalmente discutível, cremos que a solução da nossa lei tem o grande mérito de evitar que o jogador fique colocado numa espécie de limbo, já sem contrato com o clube anterior, mas sem que qualquer outro clube o possa contratar e registar o respetivo contrato, em ordem a que o possa utilizar nas competições desportivas, situação que o nosso legislador procurou evitar, por constituir um óbvio atentado à liberdade de exercício da profissão. Para mais numa profissão que, como é sabido, é relativamente curta, o que agrava o impacto negativo de quaisquer regras que impeçam a participação na competição desportiva por parte de um jogador profissional de futebol – este, convém não esquecer (e alguns parece que, por vezes, se esquecem), ainda que se dedique a uma profissão peculiar, é um trabalhador.
Em suma, ontem como hoje, com Bosman e com Diarra, prossegue a luta dos atletas profissionais por mais liberdade e por mais mobilidade. E, embora o TJUE não tenha lidado com as famosíssimas “cláusulas de rescisão”, ninguém duvida de que essas cláusulas poderão, mais ano menos ano, dar origem a uma outra decisão judicial, a qual dificilmente aceitará cláusulas exorbitantes, de valor manifestamente excessivo e apenas destinadas a “blindar” o jogador em questão, quando confrontadas com os princípios da livre circulação e da liberdade de concorrência no espaço europeu. Também aqui a nossa lei, no seu artigo 25.º, fornece algumas indicações relevantes, na medida em que, embora aceite, em via de princípio, a inclusão de tais cláusulas nos contratos de trabalho desportivo, não deixa de acrescentar que o montante convencionado pelas partes pode ser objeto de redução pelo tribunal, de acordo com a equidade, se for – como amiúde é – manifestamente excessivo."