Hipocrisia ou pura insensibilidade?


Impõe-se refletir com clareza e frontalidade sobre alguns comportamentos das organizações do futebol (nacionais e internacionais) que revelam hipocrisia ou, pelo menos, uma enorme falta de sensibilidade para a dignidade das pessoas (neste caso, dos jogadores profissionais de futebol) e em relação a princípios fundamentais que devem nortear quaisquer organizações e, sobretudo, as competições desportivas, como sejam a transparência e a igualdade entre os associados e competidores.

Não ignoramos, nem esquecemos, que muito já se progrediu, que muito tem sido feito para tornar mais equitativas as regras por que se pautam as competições do futebol profissional, mas, infelizmente, nalguns casos optou-se por recorrer a um tipo de solução que é inaceitável: consagra-se uma regra correta, mas admitem-se, simultaneamente, tantas exceções à mesma que a esvaziam. E, pior, nalguns casos consagram-se “entorses” que constituem regras inadmissíveis!

Vejamos um caso: a Liga Portuguesa de Futebol Profissional (à semelhança do que faz a FIFA) instituiu penalizações desportivas para os clubes que se encontrem em mora no pagamento das retribuições dos jogadores, e considerou, ainda, que a inexistência de mora no pagamento das retribuições é um pressuposto para que o clube se possa inscrever para disputar as competições por si organizadas.

Acontece que, em todos esses regulamentos se considerou não existir mora no pagamento da retribuição se tiver havido um diferimento do prazo de pagamento por acordo escrito do credor, com assinatura presencialmente reconhecida (infelizmente, também aqui à semelhança do que faz a FIFA). Ou seja, pretende-se, desta forma, na prática, anular o efeito salutar pretendido com o princípio — penalizar a falta de pagamento atempado das retribuições — através do reconhecimento de um acordo do jogador no diferimento do pagamento da retribuição.

Repare-se que a situação, em Portugal, é tanto mais grave quanto estes “acordos” incidem sobre retribuições em mora há mais de 60 dias. Com efeito, a exigência que é feita pela LPFP de inexistência de mora no pagamento da retribuição é feita em dois momentos do ano, Dezembro e Junho, e em ambos o que se exige é que não exista mora no pagamento das retribuições referentes aos meses de Setembro e de Março. Ou seja, admitindo-se, assim, que estejam em mora as retribuições de Outubro e Novembro e as de Abril e Maio sem qualquer penalização.

Temos, pois, que o que a LPFP admite “limpar” é a mora no pagamento de uma retribuição que se venceu, pelo menos, há 90 dias (!) admitindo, ainda por cima, que o seu pagamento ocorra quando as partes o “convencionarem”.

Ora, em primeiro lugar estas normas são politicamente inaceitáveis, por numerosas razões: (i) porque incitam à mora no pagamento da retribuição ao contrário do pretensamente pretendido, (ii) porque originam uma pressão intolerável sobre o jogador que não tem liberdade para recusar o acordo e que, assim, fica até numa posição muito delicada para retirar do incumprimento do clube as devidas consequências no plano juslaboral e (iii) constituem fonte de desigualdade entre os clubes participantes na mesma competição e, por isso, factor de distorção da verdade desportiva, uma vez que os clubes cumpridores ficarão numa situação desfavorecida e a mesma realidade – mora no pagamento da retribuição – terá tratamento diferente consoante os clubes “arranquem” acordos aos seus jogadores ou não.

Cremos, também, que tal situação é, ainda, politicamente intolerável, na medida em que se pretende relevar no plano desportivo factos que são rejeitados no ordenamento jurídico juslaboral. Com efeito, salvo melhor opinião, o referido diferimento do prazo de pagamento por acordo escrito do credor é um acordo nulo (pelo menos se não for balizado). Entretanto, o Governo deu início à revisão da Lei n.º 28/98, de 26 de Junho (diploma que consagra o regime jurídico do contrato individual de trabalho do praticante desportivo – RJCITPD). Pese embora o momento em que o faz (a pouco tempo do fim da legislatura) não se afigure propício a tal desiderato, ficará, pelo menos o pontapé de saída para uma revisão que se afigura absolutamente necessária e que se espera que possa contribuir para um regime mais adequado ás especificidades do desporto profissional. Da evolução do processo daremos aqui devida nota.