A FIFA depois de Blatter


Reportagem de Luís Aguilar revela os bastidores do organismo máximo do futebol mundial.

Intriga, subornos, compra de votos, venda ilegal de bilhetes, nepotismo, jogos de bastidores e detenções. Tudo sob a égide de lemas tão apelativos como "for the good of the game" ou "my game is fair play". Bem-vindos ao fantástico mundo da FIFA.

A manhã de 27 de Maio começou com o maior escândalo da his­tória do futebol mundial. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos indiciou nove dirigentes ou ex-dirigentes e cinco parceiros da FIFA, acusando-os de associação criminosa e corrupção nos últimos 24 anos, num caso em que estarão em causa subornos no valor de 151 milhões de dólares (quase 140 milhões de euros). No mesmo dia, o Ministério Público suíço anunciou a abertura de um processo contra desconhecidos por suspeitas de fraude e la­vagem de dinheiro no âmbito da atribuição das organizações dos Mundiais de 2018, à Rússia, e 2022, ao Qatar, enquanto a polícia helvética detinha sete membros da FIFA, num hotel de Zurique. Passados dois dias, Joseph Blatter seria reeleito para o quinto mandato, com um total de 133 votos das 209 federações.

Parecia intocável para mais quatro anos, mas demitiu-se ao fim de quatro dias. A renúncia de Joseph Blatter à presidência da FIFA surpreendeu muitas das federações que votaram nele. Es­pecialmente depois do seu discurso vitorioso: "Gosto de vocês, gosto do meu emprego. Não sou perfeito, ninguém é perfeito. Mas estou certo de que faremos um bom trabalho juntos." E, de repente, tudo mudou: "O meu mandato não tem o apoio de todos os que vivem e amam o futebol como o fazemos na FIFA, por isso vou colocar o lugar à disposição num congresso eleitoral."

Blatter anunciou a sua decisão numa conferência de imprensa marcada de emergência, que foi adiada duas vezes. Motivo para esta saída de cena: um alegado suborno de dez milhões de dó­lares (nove milhões de euros) pago pela federação de África do Sul a Jack Warner, antigo presidente da CONCACAF, por este ter ajudado os sul-africanos a conseguirem a organização do Mun­dial de 2010. O dinheiro era para ter sido pago pelos sul-africa­nos, mas estes não tinham a verba e pediram à FIFA para realizar um adiantamento. Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, é acusado de ter autorizado este suborno. Negou tudo. Disse que esse pagamento só poderia ter sido autorizado por Ju­lio Grondona, o anterior responsável pelo comité de finanças da FIFA. E onde está Grondona? Faleceu pouco depois do último Mundial.

A investigação do Departamento de Justiça norte-a­mericano aproximou-se de Valcke, Blatter sentiu o cerco a apertar e saiu de cena. Outra possibilidade aponta para que o suíço tenha pensado nesta demis­são logo no dia das primeiras detenções, mas decidiu manter-se em jogo para passar uma imagem de força às federações que o apoiavam e para ter mais tempo à frente da FIFA de forma a preparar um candidato que possa contar com os apoios de Ásia e África, dois continentes que estiveram sempre ao lado de Blatter.

Com o adeus de Sepp aparecem também outros as­pirantes à cadeira dourada da FIFA. O príncipe Ali Bin Al Hussein, derrotado no último sufrágio, já anunciou que se vai recandidatar enquanto o presidente da fe­deração francesa de futebol, Nöel Le Graët, pediu a Michel Platini para concorrer ao lugar. Luís Figo, an­terior candidato, também manifestou o desejo de voltar a entrar na corrida.

Outra hipótese passa por uma aliança entre Estados Unidos e Inglaterra. Toda a investigação que está a ser feita à FIFA mostra que os norte-americanos estão inte­ressados em poder comandar o organismo que rege o futebol mundial (pela enorme riqueza financeira desta instituição). Porém, têm pouca tradição no futebol. Por isso podem usar o seu poder financeiro e a sua in­fluência mundial para apoiar um candidato inglês onde há vários críticos severos da gestão de Blatter, principal­mente depois de a Inglaterra ter perdido a organiza­ção do Mundial de 2018 para a Rússia, num processo marcado por muitas alegações de corrupção.

Os próximos tempos prometem grandes jogadas de bastidores na FIFA. Todos aqueles que queiram chegar à presidência precisam de convencer muito bem as 209 federações com poder de decisão. Os votos voltam a ter muito valor. E vários interessados.

Armas em troca de votos
Quando o assunto se prende com candidaturas para Mundial, os valores aumentam. E podem implicar uma ajuda do governo de cada país. Alemanha e África do Sul disputavam a organização do Mundial de 2006. Foi um processo muito equilibrado. No livro Jogo Sujo, o jornalista britânico Andrew Jennings lembra que os alemães podem ter conseguido um dos votos através de um negócio de armamento: "Nove dias antes da votação, o departamento de defesa alemão encon­trou-se em privado. O Chanceler [Gerhard Schröder] e mais quatro ministros concordaram em inverter a sua política de exportação de armas e votaram a favor de entregar 1200 mísseis anti-tanque à Arábia Saudita. Boas notícias para o saudita Abdullah Al-Dabal, membro do comité executivo, com direito a votar no país organizador do Mundial."

Também há outro tipo de pedidos. Através de centros de estágio, direitos televisivos ou títulos de nobreza. A 10 de Maio de 2011, David Triesman acusou vários elementos da FIFA de lhe terem pedido subornos para votar em Inglaterra na corrida à organiza­ção do Mundial de 2018 (acabou por ser atribuído à Rússia). Esses subornos terão sido solicitados quando Triesman acumulava as presidências da federação inglesa e da candidatura do Mundial.

Logo nessa altura, Triesman falou em Jack Warner, um dos acu­sados de corrupção no caso FIFA Gate. O então presidente da CONCACAF e vice-presidente da FIFA pediu cerca de 2,5 milhões de dólares (perto de 2,3 milhões de euros) para construir uma escola de futebol em Trinidad e Tobago, o seu país natal. No en­tanto, os fundos deveriam ser canalizados directamente para a sua conta.

Triesman também falou com o paraguaio Nicolás Leoz, outro dos detidos no FIFA Gate. O antigo presidente da CONMEBOL não queria dinheiro. Leoz entrou para a presidência da CONMEBOL em 1986 e passou a fazer parte do comité executivo da FIFA em 1998. Teve muito tempo para fazer bons negócios no futebol. O próprio terá dito a Triesman que já era um homem rico. Contudo, estava farto de ser o señor Leoz. Queria ser o Sir Leoz. Ou seja, ambicionava a condecoração pela rainha de Inglaterra com o títu­lo de Knighthood. O cavaleiro Leoz. "Ele disse-me que eu, como antigo ministro inglês, deveria saber como estas coisas eram or­ganizadas e poderia alcançá-las." Triesman fez parte do governo de Tony Blair, mas nem assim conseguiu satisfazer a vontade de Leoz: "Expliquei-lhe que no nosso país as coisas não funcionam assim. Ele encolheu os ombros, virou as costas e foi-se embora."

Blatter já anunciou que não se vai recandidatar. Fala mesmo em "alívio". Para ele e para a FIFA. Outros candidatos perfilam-se. Co­meçam a tentar recolher apoios. Ambicionam a cadeira dourada. Têm oportunidade de limpar a má imagem do organismo. Será isso que vai acontecer? Ou será que vai ficar tudo na mesma, com um presidente diferente? Os brasileiros têm um ditado para es­tas situações: "Muda a coleira, não muda o cachorro." Esperemos que não seja o caso. For the good of the game.

Quanto custa um voto na FIFA?
Depende. Há votos mais caros do que outros e processos elei­torais diferentes: para a presidência da FIFA ou para o país que queira organizar o Mundial. Seja como for, encontram-se preços para todos os gostos. A oferta é grande e também há muita gente disposta a pagar. Geralmente com dinheiro. Mas nem sempre.

Paris, Junho de 1998. Faltam poucos dias para o início do Mun­dial de França e a FIFA prepara-se para eleger um novo presi­dente. Frente-a-frente: Joseph Blatter, secretário-geral, e Len­nart Johansson, presidente da UEFA. Blatter tem o apoio de João Havelange. O brasileiro esteve no comando da FIFA durante 24 anos e agora prepara-se para transferir o poder para o seu braço-direito. Mas Johansson é um candidato de peso, com mui­ta influência nos países europeus.´

"Alguns dos apoiantes de Blatter começaram a entrar em pânico no sábado que antecedeu a votação de segunda-feira. Estavam convencidos que Lennart Johansson ainda tinha a maioria… Cer­ca de 15 a 20 delegados foram persuadidos a mudar o voto den­tro do envelope por outro envelope que continha 50 mil dólares."

A história é contada no livro How They Stole The Game (1999), do jornalista de investigação David Yallop. O autor afirma que os envelopes terão sido apenas parte da estratégia que permitiu a Blatter vencer as suas primeiras eleições à presidência da FIFA. Marcos Casanova, membro da candidatura de Johansson, che­gou a acusar Blatter de oferecer bilhetes do Mundial aos pre­sidentes das federações para ganhar vantagem: "A FIFA é dona dos bilhetes. Blatter tem os bilhetes fisicamente e isso permite-lhe ligar a qualquer presidente e dizer: 'Se quiseres, dou-te dez bilhetes para a final.' Depois, coloca esses bilhetes num envelo­pe e diz: 'Com os melhores cumprimentos, Sepp.'"

Pode ter sido assim em tempos. Agora o sistema é outro. Está mais refinado. Faz-se através de estímulos financeiros destina­dos a garantir a lealdade das federações com maiores dificuldades económicas. A 30 de Janeiro deste ano, o príncipe jordano Ali Bin Al Hussein, o ex-jogador português Luís Figo e o presi­dente da federação holandesa Michael Van Praag entregaram as suas candidaturas para a corrida às últimas eleições da FIFA. No dia seguinte, Blatter contra-atacou ao anunciar que iria distribuir 300 mil dólares (cerca de 270 mil euros) por cada uma das 209 federações que votaram no dia 29 de Maio, dando a quinta vitória consecutiva ao suíço. Ao todo, foram 62 milhões de dólares que voaram directamente dos cofres da FIFA.

Na versão oficial, o dinheiro servirá para ajudas de custo nas qualificações do Mundial de 2018 e para apoio à construção de infra-estruturas, mas Figo e os restantes candidatos acusaram Blatter, logo na altura, de estar a usar receitas da FIFA para con­seguir votos. A verba pode não significar muito para alguns paí­ses, mas representa cerca de 20% do orçamento anual de 100 das 209 federações com poder de voto. ­

Esta prática já tinha sido utilizada nas eleições de 2011. Blatter iria ter pela frente o qatari Mohammed Bin Hammam, que no passado foi um dos seus grandes aliados. A três dias das elei­ções, contudo, Bin Hammam foi acusado de tentar comprar vo­tos de algumas federações da zona asiática a troco de 50 mil dólares para cada presidente. O comité de ética da FIFA eliminou a sua candidatura e expulsou-o do organismo. Blatter concorreu sozinho, ganhando pela quarta vez.

Na hora do adeus forçado, Hammam acusou o suíço de ter ofere­cido mais dinheiro durante um congresso da CONCACAF, quando prometeu doar um milhão de dólares (900 mil euros) a esta con­federação. O presidente da UEFA, Michel Platini, estava presente e disse a Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, que Blatter não tinha autorização do comité de finanças da FIFA para fazer aquela oferta. Resposta de Valcke: "Calma, eu vou encontrar o dinheiro para o senhor Blatter."

Texto: Luís Aguilar

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