Alma de 90

Na última década do século XX, o Salgueiros impôs-se na primeira divisão e chegou à Europa.
Recuemos até 1982. O clube de Paranhos tinha acabado de subir à I Divisão, depois de ter somado seis presenças entre os grandes até então: duas nos anos 40 e outras tantas nos anos 50 e 60. Na década de 80 juntou mais meia dúzia de campanhas ao currículo, mas voltaria a cair no segundo escalão no final de 1987/88. O montenegrino Zoran Filipovic, que enquanto jogador fora goleador no Benfica, assumiu o comando técnico dos salgueiristas na época 1989/90 e logo assegurou o regresso ao primeiro escalão. E os homens provenientes dos Balcãs foram fundamentais para ajudar o clube num longo reinado no topo do futebol nacional, que duraria até 2001/02, como nos disse Milovac. "Eu vim por causa do Filipovic. O Salgueiros já tinha dois jugoslavos, o Dragan e o Nikolic. Depois de mim ainda chegou o Djoincevic." E recorda o regresso do clube com saudade: "A época 90/91 foi uma das melhores do Salgueiros. Começámos muito mal o campeonato, perdemos 5-1 com o Sporting logo no arranque, depois endireitámos e acabámos em quinto."
Os jogadores do Salgueiros ouvem o treinador Zoran Filipovic.
Foi a melhor classificação de sempre do clube portuense, que ganhou o direito de marcar presença na Taça UEFA da época 1991/92, a única no longo historial. "O Cannes tinha o Zidane, o Luis Fernández, antigo internacional francês, que era o capitão, e o Omam-Biyik, um avançado camaronês. Foi ele que marcou o golo lá. Cá marcou o Jorge Plácido, um grande golo num remate à meia volta. Jogámos muito bem, mas não aproveitámos para marcar mais um golo. Tivemos azar. Tal como lá, porque sofremos o golo a cinco minutos do fim. Depois fomos para prolongamento e perdemos nos penalties", conta-nos o antigo médio defensivo. "Foi muito bom para o clube e para a massa associativa, porque foi a primeira vez que o Salgueiros esteve na Europa. Havia muito entusiasmo no clube", lembra.
O antigo central Paulo Duarte, actual treinador do Club Sfaxien, da Tunísia, também fez parte da equipa que defrontou o Cannes. "Foi um momento histórico, mas algo frustrante porque após uma vitória no Bessa por 1-0 perdemos lá. Foi um sonho que caiu por terra, um momento de grande tristeza”, lamenta.
Dia 19 de Setembro de 1991: Nikolic frente ao Cannes, no Bessa. Segundo a UEFA, o velhinho Vidal Pinheiro não tinha condições para receber jogos europeus.
Esteve apenas dois anos no Salgueiros, mas as recordações não podiam ser melhores. "Foi dos clubes onde tive mais prazer em jogar, com respeito por todos por onde passei. Mas em termos de alma clubística, de paixão dos associados, o Salgueiros tinha uma mística que era algo de anormal. Um clube de bairrismo puro, as pessoas faziam do clube uma família. Era isso que fazia a diferença para os outros clubes.
É único. Essa época foi importantíssima para o Salgueiros e para mim. Foi a minha primeira época na I Divisão e logo com a estreia numa competição europeia", conta o antigo seleccionador do Burquina Faso e do Gabão.
Milovac domina a bola perante o olhar do leão Afonso Martins.
Milovac prolongou a sua ligação com o Salgueiros até ao final da época 1996/97 e escreveu novas páginas de glória na história do clube. "Depois de irmos à UEFA tivemos várias épocas boas. O Mário Reis foi nosso treinador durante quatro épocas e foi um período muito calmo. Nesse último ano, na última jornada, contra o Farense, empatámos 1-1. Perto do fim, tivemos um penalty a nosso favor, mas o Abílio falhou. Se tivesse marcado tínhamos ido novamente à Taça UEFA. Nesse ano ganhámos ao Benfica na Luz, ficou 4-3, e nas Antas, por 2-1. Com o FC Porto marquei o primeiro golo e o Luís Carlos confirmou a vitória. Foi com o Carlos Manuel como treinador. E é curioso que na primeira volta estávamos a lutar para não descer", enaltece.
Em 2002, o Salgueiros pôs fim a uma série de 12 anos ininterruptos na I Divisão, e caiu no segundo escalão, no qual permaneceu até 2004. Nesse período, além dos atletas provenientes da formação, passaram pelo clube jogadores como Silvino, Pedro Espinha, Caneira, Pedro Reis, Abílio, Rui França, Deco, Nandinho, Vinha, Féher ou Edmilson, que tantas alegrias deram aos adeptos de Paranhos.
Seguiu-se uma nova queda e, depois do velhinho Sport Comércio e Salgueiros fechar portas devido a dívidas ao fisco e à Segurança Social, foi fundado o Sport Clube Salgueiros 08. Uma situação que entristece Paulo Duarte. "Hoje nem uma casa própria tem. Penso que isso foi matar a alma salgueirista. A massa associativa é um pouco idosa e tinham ali no velhinho Vidal Pinheiro a sua segunda casa. Era um clube que funcionava à base do bingo e da força dos seus presidentes e hoje está a sobreviver em escalões muito inferiores à sua grandeza."
Milovac, hoje afastado do futebol e estabelecido em Faro, também lamenta os tempos que o clube hoje vive: "Senti uma grande tristeza, porque tenho óptimas lembranças. Foi o único clube português onde joguei."
No início de Junho, António Maria, presidente da comissão administrativa que gere o Salgueiros, anunciou nova mudança de nome (para Sport Clube Salgueiros), estatutos e emblema, agora com o ano 1911, que assinala a fundação do clube que nasceu à luz de um candeeiro público, a substituir o "08", sempre tão contestado pelos adeptos salgueiristas. Uma mudança a recordar o passado, como que a pedir um regresso aos tempos áureos da alma salgueirista nos principais palcos do futebol nacional.
Ricardo Sá Pinto com a camisola do Salgueiros.
Formação dourada
"Joguei com o Sá Pinto, o Pedrosa, o Nélson... O Salgueiros era e sempre foi um clube bairrista. E quando se fala de bairro fala-se de futebol de rua. O Salgueiros viveu dessa cultura e a sua formação era captar esses jovens", diz Paulo Duarte. Também questionámos Milovac sobre a qualidade dos jogadores oriundos da formação do clube: "os maiores talentos foram primeiro o Nélson, depois o Pedrosa e o Sá Pinto, o Leão e o Renato. Tudo jogadores que passaram dos juniores do Salgueiros para a primeira equipa."
José António Linhares, presidente do Salgueiros entre 1995 e 2004.
José António Linhares
Antigo advogado e empresário têxtil, presidiu o Salgueiros entre 1995 e 2004, sendo responsável por um longo período de sucesso do clube, como nos recordou Paulo Duarte: "O Salgueiros perdeu um grande presidente, que muito fez pelo clube, juntamente com o Carlos Abreu, com quem também trabalhei." Falecido em 2010, Linhares esteve nos melhores momentos do emblema de Paranhos, mas também marcou os piores, como a descida e o fim do futebol profissional.